O escritor Machado de Assis
O escritor Machado de Assis. Crédito: Reprodução

A complexidade do narcisismo: por que o conceito é tão difícil de ser percebido

Quando se vê um filme ou se lê um livro, é comum considerá-los peças de ficção, algo fora da realidade, e causa surpresa ao espectador descobrir que o que viu em cena está acontecendo em sua vida

Tempo de leitura: 3min
Publicado em 02/11/2024 às 10h00
  • Adelmo Marcos Rossi

    É empreendedor, engenheiro, psicólogo, filósofo e escritor, coordena o Grupo de Pesquisa do Narcisismo. Publicou "A Cruel Filosofia do Narcisismo" (2021) e "O Imortal Machado de Assis – Autor de si mesmo" (2024). Acha-se envolvido também no estudo do autismo sem linguagem

Machado de Assis introduziu um diferencial na literatura. Esse diferencial apoia-se no fato de ter tomado desde bem jovem o conceito de narcisismo como princípio de seu pensamento, que o protegeu de surpresas. Seu narcisismo passou oculto junto com sua psicologia sem que tivesse sido até hoje descoberto. É o que demonstro no livro "O Imortal Machado de Assis – Autor de si mesmo" (2024), recentemente lançado.

Quando se vê um filme ou se lê um livro, é comum considerá-los peças de ficção, algo fora da realidade, e causa surpresa ao espectador ao descobrir que o que viu em cena está acontecendo em sua vida.

O conde Tolstói fez enorme sucesso com suas grandes obras, "Anna Kariênina" e "Guerra e paz", estava bem casado, bem de vida, mas não se deu conta que em sua obra ele se contava enquanto contava, como se estivesse separado do que produzia. Em sua ficção estava também representado. Em 1878 passou por uma crise existencial, então publicou "Uma confissão" e logo a seguir "A morte de Ivan Ilitch", agora, nestas duas obras, de cunho pessoal, o eu lírico na obra era o autor do livro.

Esse fenômeno de disjunção acontece pelo fato de o narcisismo não ser inerente ao ser humano desde o nascimento, vindo-lhe de fora, sem que seja percebido, no período de formação que vai de zero a cinco anos, e uma vez adquirido, estará em ação no sujeito, que segue adiante, inconsciente de ter adquirido um conceito necessário para o cuidado de si, para a responsabilidade, o desejo de ter sucesso na vida, mas sendo também fonte de doenças.

Essa aquisição inconsciente do narcisismo faz com que ele seja um dos conceitos mais difíceis de ser percebido.

Machado de Assis, chegando aos 17 anos de idade, desejoso de ser escritor e percebendo o narcisismo em ato no relacionamento humano, tomou-o como princípio, e com ele, combinado com outros – Petalogia, Rubicon, Diógenes, Caiporismo, Ponto de Admiração, Prometeu no Cáucaso, Espelho –, criou uma psicologia literária em que esses conceitos terão analogia aos depois descobertos por Freud.

Pelo seu lado, Freud não tinha uma escolha profissional definida, por acidente de percurso se tornou médico aos 26 anos, vindo a criar, depois dos 40 anos, uma psicologia dentro da medicina com a qual atendia pacientes. Nessa psicologia, que nomeou psicanálise, tomou como princípio o inconsciente, e considerou que a causa das doenças era o material reprimido retornando desse inconsciente.

Em 1914 aconteceu uma reviravolta quando Freud deu-se conta de que o que se encontrava oculto por detrás das doenças era, na verdade, a inconsciência do narcisismo e justificou-se dizendo “essa parte da alocação da libido [narcísica] ficou inicialmente oculta para a nossa pesquisa, cujo ponto de partida eram os sintomas neuróticos”.

Freud tinha então partido das doenças, porém causadas pela inconsciência do narcisismo que empurra a pessoa a se fazer notar a qualquer custo, engolindo fogo, como os artistas de circo, e não de um inconsciente que existisse por si mesmo sem narcisismo. É nesse ponto que se encontra o diferencial de Machado de Assis: ter tomado o narcisismo como princípio de seu pensamento protegeu-o de ser surpreendido como o foram Tolstói e Freud.

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