A natureza líquida de Ilus, uma cantora, compositora e artista multinguagem

Ilus é doutora em Geofísica Espacial que abandonou a carreira acadêmica para se dedicar às artes e acaba de lançar o álbum "Natureza Líquida"

Publicado em 08/07/2023 às 10h00
Cantora Ilus
Cantora Ilus. Crédito: Melina Furlan/Divulgação
  • José Eduardo Costa Silva

    É doutor em música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Historiador e especialista em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É membro efetivo da Lute Society of America e da Société Française de Luth. É professor associado na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)

“Natureza Líquida” é um álbum de canções da cantora, compositora e artista multinguagem Ilus que chega na palavra enérgica de um poema em versos livres - “O cheiro da morte” - e enquanto esta palavra corre no fluxo de seu ritmo e de suas entonações, significados de diferentes profundidades são mostrados.

Pois a máscara que veda o cheiro onipresente ou um “coberto(r) feito de nãos” não são coisas que se referem apenas ao momento dramático de uma pandemia, como cena de uma “modernidade liquefeita”; esses e outros fatos são sinais da existência que experimenta tristeza e júbilo na morte e extrai desta experiência um apelo à vida.

E não parece coincidência que um poema que verse sobre a morte seja seguido por uma toada existencialista, cuja levada binária e sincopada do violão remete ao ambiente sertanista imaginário, tal como aquele do sertanejo metafísico da obra de Guimarães Rosa. “A hora do não ser” pode bem ser o não espaço de Diadorim e Riobaldo, que habitam o corpo como masculino e feminino, assim como a voz de Augusto Matraga, que encontra o gozo na perversidade mais radical. E, uma vez existindo perversamente entre o ser e o não ser, resta escutar o silêncio deixado pela canção passageira.

“Canto vadio” é uma porta de entrada no universo íntimo da compositora. Esta canção está em diálogo com “Sem Fantasia”, de Chico Buarque. Na medida em que o emprego de técnicas de alusão e paródia estabelecem o intertexto, configura-se um desses enigmas que o ouvinte se alegra em decifrar.

Porém, a partir da mensagem “eu mudo”, a compositora altera a estrutura melódica, saindo do ethos de balada intimista para se expressar com uma melodia de estrutura modal (frígio), configurando o ethos dramático e misterioso. A propósito, o emprego do modo frígio é um de seus traços estilísticos, presente nessa e em outras de suas canções.

O que se anuncia em “Canto Vadio” agora está plenamente realizado em “Anjo Decaído”: a tensão entre o intertexto e a expressão intimista radical. Do “voo de Ícaro” às “Asas do desejo”, alusões que participam da construção poética de um sujeito que sabe que a condição de sua própria humanidade é a expulsão do paraíso.

A dureza da queda no asfalto é ritmada pelos ataques nos acordes de harmonia primária; então a busca pelo sol é a imagem que anestesia a dor que não consegue se esconder nas emissões de um canto, cuja rusticidade se amplia pelos recursos de projeção vocal lírica e que joga para fora o que se buscou no avesso da pele.

Música
Cantora Ilus. Crédito: Melina Furlan/Divulgação

É justamente o canto que estabelece a continuidade entre “Anjo Decaído” e “Verdades Mortais”. Esta canção se inicia com uma melodia trôpega, sustentada por uma linha de baixo desenhada no violão. Algo que deixa antever o caráter ambíguo do texto, que coloca o amor como possibilidade de solidão; dizem as palavras: “Me deixa, eu deixo”.

Enquanto a harmonia se estabelece, a melodia se estabiliza para poder se erguer em uma linha modal, bem ao estilo da compositora, uma linha que se resolve em um vocalize, como se a música esvaísse no teto de uma capela.

Mas a música se refaz em “Quebra-Cabeças”, canção erguida sobre um texto de métrica predominantemente hexassílaba (Heroico Quebrado) e sobre o modalismo reincidente. Essa estrutura sonora é o suporte para a narrativa poética que mostra a crueza da vida política, reduzida ironicamente à condição de jogo amoroso sujo. E após as palavras jocosas “cum quebra”, a canção termina em uma pronunciada “cadenza blues”.

“Amor do Fim do Mundo” é uma canção confessional que trata do amor; eis um instrumento utilizado pelo sujeito que tenta sair de si para se encontrar no corpo do outro. A ideia desse deslocamento subjetivo é reforçada pela voz dobrada, em contracanto, que compõe texturas que suavizam a rusticidade da melodia minimalista. E no fio tênue de tensão, a balada romântica insinua uma vez mais a irrupção de um canto dramático.

“Antes que o Mundo Acabe” tem a mesma natureza da canção anterior. Porém, o outro que provoca o deslocamento subjetivo é ampliado: ele é o objeto do amor e também o mundo das coisas ao redor. E nesse contexto poético, “ver o mundo pelo avesso” é uma espécie de Narciso retrogradado, estado de quem consegue ter o mundo dentro de si.

O poema se apoia na melodia modal, que desde antes já sabíamos, é um forte elemento de unificação poética. E essa melodia é mais uma vez encerrada pelos vocalizes afetivos.

“Sou Pequena e Mar é Grande” é um retorno à temática existencialista do início do álbum. Os versos de métrica irregular cadenciam uma linha melódica suave que novamente irrompem em vocalizes. A constante incidência desses procedimentos poéticos unificadores acalma os sentidos e dispõe a escuta para a voz que canta o sentimento de ser na imensidão do mundo.

“Ogiva” sintetiza os temas tratados no álbum, quais sejam a existência, o amor e os perigos da inconsistência do sujeito. Vale outra vez o intertexto alusivo e parodiado: “Tudo que é sólido se desmancha no seu lado”; quer dizer, vira líquido, como o são a palavra, a música e a própria natureza.

E a liquidez da música sempre esteve presente, seja na suavidade da melodia, seja nos vocalizes. Todavia, há momentos surpreendentes de interrupção do fluxo; o “tic-tac” de algo que está pra explodir e se desvanecer, mas que antes encontra a solidez ilusória dos dobramentos das linhas melódicas do violão e do contracanto.

QUEM É ILUS?

Cantora, compositora, atriz, poeta e dramaturga, Ilus possui uma trajetória no mínimo inusitada. É doutora em Geofísica Espacial e abandonou a carreira acadêmica para se dedicar às artes. Inicialmente, apresentava-se com o nome de Patricia Eugênio, depois como Patricia Ilus e, a partir de 2023, assume Ilus como nome artístico.

A artista possui vasta participação em concertos, óperas e shows. Estreou na ópera em 2012, com o papel da Irmã Genoveva, em “Suor Angelica”, de Giacomo Puccini. Em 2014 fundou o grupo Opera Prima, que já produziu três óperas, um espetáculo de rua e quatro concertos. Em 2018 fez o papel de Hare Krishna na adaptação do musical “Hair”, no Teatro Glória.

Tem dois livros publicados: “Notinhas Poéticas” (2017) e “Cabelos e Corpos – Uma dramaturgia das Flutuações” (2020), e duas dramaturgias junto ao grupo Elas Tramam, “[Entre]” (2018) e “Eva Gina” (2019). É pós-graduada em Canto e Expressão, e em 2018 iniciou o projeto intitulado “Meu Corpo Fêmea”, que envolveu música autoral, clipes e shows e que se encerrou com o lançamento do seu primeiro EP, em outubro de 2021.

Compôs a trilha sonora da peça infantil “Geladeira Mágica” e foi idealizadora e diretora artística do espetáculo “A Filha do Regimento”, que promoveu a primeira ópera regida por uma orquestra formada exclusivamente por mulheres no Espírito Santo.

Entre os seus trabalhos artísticos também se destacam as lives “Essa Rua Pode ser Minha” (2021), reunindo músicas eruditas brasileiras com arranjos populares, viabilizada pela Lei Aldir Blanc, por meio da Prefeitura Municipal de Vitória; “Da Porta pra dentro” (2020), como parte do Cultura Conecta, Edital Emergencial da Secretaria de Estado da Cultura; e “Ilus in Funk” (2020) – Arte em Casa, por meio do Edital Emergencial da Prefeitura Municipal de Vitória. O conjunto de seus vídeos e lives está disponível em seu canal no YouTube: www.youtube.com/c/patriciailus.

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