Um amigo meu, doutor em ciências da computação, costuma comparar o recente entusiasmo em torno da inteligência artificial a sexo na adolescência: muita gente fala demais sobre o assunto, embora quase ninguém saiba do que está falando ou mesmo o que precisa ser feito.
Como toda nova tecnologia, a IA provoca uma euforia no imaginário popular com suas promessas de inovação e simplicidade técnica – uma ferramenta empregada para aprimorar nossos conhecimentos e talentos naturais capazes de ultrapassar as fronteiras humanas rumo a um progresso criativo ainda não alcançado em nossa odisseia tecnológica.
Não restam dúvidas de que a aplicação de IA em ciências naturais ou ciências exatas pode ajudar em pesquisas científicas ou mesmo industriais, e trazer benefícios para o bem-estar, a saúde e a qualidade de vida humana. Por outro lado, novas tecnologias quando surgem também podem trazer receios – quer dizer, a ameaça de que essas novas tecnologias também possam ser usadas para prejudicar o indivíduo e a sociedade. E nesse âmbito a tecnologia de IA tem sido encarada com muita preocupação por artistas que atuam em vários segmentos da indústria criativa e do mercado de entretenimento.
No ano passado os sindicatos de roteiristas e artistas da indústria de cinema e televisão norte-americana entraram em greve durante quase 4 meses a fim de negociar acordos trabalhistas para aumentar sua remuneração e a participação nos resultados comerciais das grandes produções de Hollywood. Foi a greve trabalhista mais prolongada na história da indústria de entretenimento audiovisual dos EUA – e foi uma mobilização verdadeiramente histórica especialmente porque estamos falando de um país que não tem lá muito apreço por movimentos sindicais e direitos trabalhistas.
Entre as principais reivindicações da classe artística estava uma pauta sobre direitos autorais e regulamentação de uso de IA nas produções audiovisuais, tanto na criação de roteiros quanto na simulação de imagens e sons corporais de atrizes e atores. Essa reivindicação buscava enfrentar a ampliação desenfreada de IA que atingia todos os setores da cadeia produtiva do audiovisual, desde a criação até a promoção e transmissão de conteúdos midiáticos. Para os grandes estúdios a IA serviria fundamentalmente para reduzir seus custos de produção, uma promessa econômica corroborada pela indústria de informática: as famosas BigTechs.
Nos últimos dias assistimos à euforia promovida pelo ChatGPT ao disponibilizar um filtro para que os usuários transformassem suas fotografias em ilustrações que emulavam a estética das animações produzidas por outro grande estúdio de cinema, mas desta vez um estúdio japonês, o Studio Ghibli.
Não apenas isso viola os direitos autorais e patrimoniais do estúdio comandado por Hayao Miyazaki, célebre roteirista e diretor de animações laureadas com o Oscar, como "A Viagem de Chihiro" (2001) e "O menino e a garça" (2023). Mas, diga-se de passagem, isso também fere os princípios artísticos de um cineasta que já declarou ser contra o uso de IA em suas produções, pois ele considera que a ferramenta “é um insulto à própria vida”.
Se a intenção do ChatGPT foi “homenagear” o estúdio e o artista, essa justificativa cai por terra, já que o próprio Miyazaki nem se manifestou sobre o ocorrido – ou seja, acho que ele não deve ter gostado muito desse tipo de “homenagem”. Porém, se a justificativa é econômica, cooptando a estética de obras de arte para atender os desejos criativos dos usuários da ferramenta de IA, então a própria noção de “arte” ou “criatividade” também se esvai.
O Studio Ghibli não é contra incorporar suas criações em outras linguagens, como foi visto na própria montagem de uma peça teatral de "A viagem de Chihiro", adaptada e dirigida pelo dramaturgo britânico John Caird em 2022, que usou fantoches e dança para levar toda magia da animação para os palcos japoneses.
Acredito que o problema do Studio Ghibli com o ChatGPT se deve ao fato de que a ferramenta de IA suprime não apenas o material humano de suas “criações”, mas também a qualidade artística que o estúdio luta para realizar desde 1985.
Embora a tecnologia seja parte inalienável da cadeia produtiva do audiovisual desde seu surgimento – pois antes de ser linguagem ou instituição, lembremos que o cinema nasce primeiro como tecnologia de registro de movimento –, o uso banalizado da tecnologia de IA não cria arte. Aquela “aura” natural da obra de arte tão defendida por filósofos como Walter Benjamim míngua frente à tecnologia. Parafraseando Fred Zero Quatro da banda Mundo Livre S.A.: computadores não fazem arte, pois carecem de um cérebro orgânico.
Uma inteligência artificial não tem o talento natural que apenas um ser humano teria para fazer uma criação artística, portanto não é capaz de criar arte, apenas de “imitar” o que artistas fazem naturalmente. A grande “viagem” dos entusiastas da IA é achar que ela poderia substituir artistas e produzir arte – aquilo que mais se aproximaria da vida. Como algo inanimado, artificial, sem vida, poderia criar algo que se aproxima do que nós, humanos, conhecemos como vida? A mera “imitação da vida” ou uma “vida artificial” poderia ser considerada arte?
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