Oráculos da digitalidade, lá pela virada do milênio, previam o fim do fenômeno social das massas como uma possibilidade concreta. A potencial atomização ensejada pelas tecnologias digitais constituiria um mundo de customizações que alcançariam desde a indústria cultural até a ribalta das ideias, passando pelas vitrines do consumo mais ordinário.
Mas, ainda que os ciberterritórios tenham se formado como um continente de bolhas, as massas seguem firmes e fortes, nos links das redes, no chão do asfalto, nas totalizações das urnas. Daí que, ao completar um século neste 2020, o livro “A Psicologia das Massas e Análise do Eu”, de Freud, consolida sua vocação de clássico, aquele tipo de texto que “nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, na concepção de Calvino.
Ou seja, cem anos depois, “A Psicologia das Massas” ainda tem muito a nos dizer sobre um fenômeno que se mantém vivo, numa contingência social e tecnológica algo diversa daquela que o consagrou como uma das principais marcas do século XX.
Freud observa que as massas remontam à horda primeva, articulada em torno de um grande pai, também fonte de orientações e norte. Assassinado o pai originário, não cessamos de eleger substitutos. A busca pela proteção de quem exerça a função paterna, projetado no ou na líder, é uma das alternativas de se auferir algum bem-estar diante do terror do desamparo estrutural que a todos afeta ao longo de toda existência.
Ademais, Freud enumera, entre outros, as ideias, o trabalho, o amor e o ódio como alguns dos amálgamas das massas. Inclusive, só se pode sustentar o amor no seio de um grupo, algo essencial à sua integridade, uma vez que se consiga direcionar pulsões violentas e agressivas a outros coletivos. Caso contrário, o furor predatório acaba por implodir o grupo, que depende de constantes doses de amorosidade.
Nesse contexto, Freud reporta que “a massa é extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica, o improvável não existe para ela”, acrescentando que também é “impulsiva, volúvel e excitável”. “Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exaltados. Ela não conhece dúvida nem incerteza”.
José Antonio Martinuzzo
Autor do artigo
"Outra marca importante das massas é o fato de que elas 'nunca tiveram a sede da verdade'"
Outra marca importante das massas é o fato de que elas “nunca tiveram a sede da verdade. Requerem ilusões, às quais não podem renunciar. Nelas o irreal tem primazia sobre o real, o que não é verdadeiro as influencia quase tão fortemente quanto o verdadeiro. Elas têm a visível tendência de não fazer distinção entre os dois”. Alguém aqui percebe uma descrição da “pós-verdade” e do lugar das fake news a sustentar o fenômeno atual das massas?
Sobre o papel do líder, Freud assevera que ele é fundamental na constituição e na preservação de um grupo. Ainda que o “pai da psicanálise” anote a ocorrência de massas duradouras sem uma liderança explícita ou material, como as religiões e as forças armadas, organizadas em torno de abstrações como divindades e patriotismos, ele afirma: “A natureza da massa é incompreensível se negligenciarmos o líder”.
IDENTIFICAÇÃO
As massas articuladas por lideranças têm raízes imemoráveis e são dinamizadas pelo que se denomina na psicanálise de “identificação”. Segundo Freud, “primeiro, a identificação é a mais primordial forma de ligação afetiva a um objeto; segundo, por via regressiva ela se torna o substituto para uma ligação objetal libidinosa, como que através da introjeção do objeto no Eu; terceiro, ela pode surgir a qualquer nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos sexuais. Quanto mais significativo esse algo em comum, mais bem-sucedida deverá ser essa identificação parcial, correspondendo assim ao início de uma nova ligação. Já suspeitamos que a ligação recíproca dos indivíduos é da natureza dessa identificação através de algo afetivo importante em comum, e que podemos conjecturar que esse algo em comum esteja no tipo de ligação com o líder”.
Seja como uma característica estrutural das subjetividades e intersubjetividades, seja pelo fato de uma sociabilidade contemporânea mais tocada por afetos que pela razão, seja pelas tecnologias digitais que possibilitam múltiplas conexões sem limitações geográficas, a articulação da vida em massas se impõe até mesmo num tempo em que habitar o mundo se tornou um duplo, de presença e de digitalidade, subvertendo mesmo a potencial lógica atomizada dos ciberterritórios.
Enfim, tanto sob o peso da gravidade, na experiência sensível da vida, quanto nas diáfanas conexões virtuais, no interior das densas nuvens digitais, as massas se impõem como um sinal persistente da humanidade, articuladas em razão do soturno desamparo estrutural, alimentadas pela ânsia do reencontro de um “pai” perdido, e mantidas por amores e ódios perversamente manejados.
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