“Que é a verdade?” Essa pergunta encerra um longo diálogo travado entre Pilatos e Jesus. O governador romano se retira para concluir que aquele homem era inocente. Essa pergunta não foi respondida. Não naquele momento, porque já o havia manifestado por outros meios e por tantos testemunhos.
Aqui, em terras capixabas, os escravos prestavam também seus testemunhos, embora analfabetos e não raramente sem qualquer domínio da linguagem lusitana que aqui grassava. Essa é a questão central em meu livro “A Verdade dos Processos”: a verdade, doa a quem doer. Não é um compêndio de ideologias ou teses sobre a escravidão.
Também não é um manifesto panfletário sobre os horrores desse suplício, que envergonha e envergonhará a humanidade para sempre. Preocupou-me a verdade, tema que abordo logo no primeiro capítulo também para esclarecer, com certa lamentação, que a verdade nem sempre represente o verdadeiro, o fato, a chicotada. Porque a verdade é aquilo que foi dito sobre o verdadeiro, nem sempre com simetria ou adequação. Mas é algo bem próximo. Palpável.
O livro, fruto de uma tese de doutorado, é baseado nos testemunhos da verdade e só. Naquilo que disseram escravos, forros, libertos, mulheres e homens. Nada no livro é deduzido, embora a tentação para modular as versões seja grande. Afinal, todos ali estão mortos e já não poderiam retorquir minhas versões, pelo menos assim espero. Mas é que existe um vetor ético aí: o respeito pelos mortos e suas verdades imutáveis. Os escravos sofriam flagelos abomináveis aqui em Vitória, de onde escrevo.
Sabe aquela rua próxima ao Palácio Anchieta? Pois é. Ali correu sangue escravo. Talvez você tenha pisado exatamente onde caiu um negro agrilhoado ou onde um negro de ganho sentou-se para descansar enquanto vendia o pão do Senhor Manoel, que alugou o escravo do amigo por uma semana.
A escravidão capixaba era urbana, costumam dizer os entendidos. Mas era escravidão, digo eu. E esses escravos, quando prestam seus testemunhos, deixam claro que estavam sempre pelas ruas da cidade, por isso testemunhavam tanto. Viam tudo. De dia e de noite.
Aliás, à noite eram comuns os crimes cometidos em vendas e nos “secos e molhados”. Porque a cidade de Vitória fervilhava e era, de certo modo, bem iluminada. Sob as lamparinas estavam lá os escravos, ocupando-se dos afazeres de seus senhores donos de comércio, mas também em festejos religiosos, onde todos se espremiam para saudar a São Benedito. Os escravos disseram isso, não eu.
Raphael Câmara
Autor do livro “A Verdade dos Processos”
"A mim me coube reconstruir Vitória pelas entrelinhas dos depoimentos e expor, nesse cenário, os flagelos que são narrados pelas testemunhas já não nas entrelinhas, mas em linhas grossas e de forma expressa. Desses e de outros tantos personagens reais, pulsantes e transeuntes das mesmas ruas que todos nós"
Livres, libertos, escravos, quase todos com sobrenome, alguns apenas identificados como “de Tal” – identificando sua real condição de “objeto” – e todos sujeitos de autos criminais lavrados e julgados na segunda metade do século XIX na Comarca da Capital do Espírito Santo.
São protagonistas de brigas, ataques verbais, violências físicas, abusos sexuais, assassinatos, roubos, entre tantas ocorrências comuns a uma territorialidade atada aos grilhões do cativeiro, considerando que, ainda que se trate de livres, na tragédia da incivilidade sistêmica, ninguém está a salvo.
Se alguns penam infinitamente mais que outros, e isso é a dramática verdade dos cativos, todos são alcançados de alguma sorte pela maldição da violência estrutural tecida pelas correntes da escravidão. E essa verdade foi extraída do testemunho puro e simples, daquele que sofre e daquele que bate, não em grandes epopeias ou momentos extraordinários, mas no cotidiano do indivíduo na simplicidade de uma vida ordinária, que nada tem a perder que não a paz.
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O cotidiano é o sujeito por inteiro, como ele é, sem coroas, sem fleumas, sem distinções. Essas são as pessoas que me interessam por agora, e dessas pessoas eu busquei extrair a verdade dos processos e da vida capixaba. Eu confio nelas.
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