O Espírito Santo tem em sua história recente – a chamada história do tempo presente – alguns personagens que fizeram a diferença na construção de um território cultural moderno e empreendedor. Três desses construtores da modernidade partiram neste ano de 2021. Jônice Tristão, Lorentzen (criador da Aracruz Celulose) e Cariê Lindenberg.
Pois hoje quero fazer um breve histórico da contribuição de Cariê à construção da nossa modernidade. Fazer uma espécie de síntese de seu amor pela liberdade e a forma com que ele contribuiu para que ela fosse forte entre nós, seja como músico, como escritor ou empresário.
Mas sobretudo quero tratar de seu papel fundamental como empresário da área de comunicação, embora as outras faces do cristal estejam presentes em toda a sua obra, a mais importante do ponto de vista social foi sem dúvida a construção da Rede Gazeta.
Comecemos do começo. Cariê nasceu no Rio de Janeiro, mas veio para Vitória ainda bebê, e foi aqui que cresceu, casou, criou seus filhos e prosperou como homem de comunicação. Filho do político mais poderoso do Espírito Santo no pós-guerra, Carlos Lindenberg, que foi, entre outras coisas, por duas vezes governador do Estado (1947/1951 e 1959/1962), nunca quis ingressar no mundo da política. Ajudou o pai em campanhas eleitorais e ocupou postos de estrita confiança do governador em seu gabinete, mas jamais desejou dar prosseguimento familiar à saga política herdada desde Jerônimo Monteiro. Foi sempre auxiliar discreto. O poder não lhe interessava nesse plano. Ele nunca quis ser rei.
Mas foi, de fato, um capixaba notável. Sua trajetória da maturidade foi iniciada como advogado formado na PUC do Rio em 1958. Essa profissão nunca chegou de fato a exercer. Seus tempos de juventude no Rio foram consumidos em outras frentes. Foi nessa época que ele acompanhou o surgimento da bossa nova, convivendo com figuras de proa daquele movimento como Miele, Roberto Menescal e Tom Jobim.
Costumava dizer – no tom bem-humorado com que levou a vida e mesmo com certa dose de exagero - que não gostava de música, gostava de bossa nova. Dessa sua paixão pela música surgiu "Devaneios", composição sua que por muitos anos abriu e fechou a programação da TV que fundou, a TV Gazeta, transmissora capixaba da Rede Globo. Reuniu frequentemente os amigos em tardes musicais em sua casa na Ilha do Frade, onde tinha um palco dentro da sala. Ainda no campo das artes, na literatura, teve uma vocação tardia.
Passou as duas últimas décadas de sua vida escrevendo crônicas, memórias bem-humoradas e reflexões sobre a sociedade. Desde “Eu e a Sorte”, o primeiro de 2002, até “Vou Te Contar” de 2019, com destaque para “Pingos e Respingos” onde tratou das graves consequências das fortes chuvas que caíram sobre o Espírito Santo em 1979.
No seu último ano de vida começou a organizar algumas reflexões políticas sobre os impasses do Brasil atual. Andava sem paciência com o que via, não concordava com a forma de governar que estamos vendo no país, do ódio que se espalhava. Alinhavava sugestões. Acho que contava comigo para escrever o prefácio, e me mostrou a primeira versão. Esse livro ficou inacabado. Problemas de saúde o afastaram da escrita. A morte o levou antes do fim do trabalho.
UM LIBERAL, UM ARTISTA, UM DEMOCRATA
Mas voltemos à trajetória de vida do nosso personagem, ao começo de tudo. Como costuma acontecer com aqueles que têm alma de artista, mas com espírito empreendedor, virou publicitário, ou melhor, dono de agência. Foi um dos fundadores da primeira agência capixaba, e Eldorado Publicidade, em 1965.
A agência foi criada para ajudar a instituir um mercado publicitário mais profissional. Ele sentia essa ausência de profissionalização por sua participação na Plano Engenharia. Essa dupla militância entre as artes e os empreendimentos o acompanharia toda a vida. E teve tudo a ver com a sua militância no jornalismo. Sem fortes anunciantes não existe imprensa livre e independente.
Em 1963, passou a trabalhar no jornal que pertencia ao seu pai como diretor comercial. A partir daí, começou a contribuição que seria a mais definitiva na vida política, econômica e social capixaba. Criar uma imprensa moderna e livre de amarras partidárias.
Antes da gestão de Cariê, era o jornal do grupo político do PSD, partido conduzido por seu pai de forma ainda coronelística. Uma espécie de panfleto, como aliás eram todos os veículos naquela época. “A partir de 1967, eu fiz em A Gazeta um paciente, longo e exaustivo esforço para desvinculá-la de um grupo político, o PSD”, ele escreveu em “O fato e sua versão”, publicado em Eu e a Sorte.
A inflexão em termos dos maiores jornais foi dada pelo espírito ético e vanguardista do Cariê. Isso sem grandes alardes, como era de seu feitio. Doce e suave como ele próprio as mudanças foram sendo instituídas. Se por um lado os governos militares criaram obstáculos pela instituição da censura, por outro lado quebrou as fronteiras partidárias ao criar o bipartidarismo e abrigar na Arena de Carlos Lindenberg antigos desafetos políticos. Muitos foram incorporados ao jornal.
A Gazeta mais profissional incorporou intelectuais importantes, criou uma nova compreensão da vida cultural. O passo definitivo, como ele mesmo admite em seus escritos, para a consolidação de uma moderna rede de comunicação foi a implantação de um canal de televisão afiliado da Rede Globo, em 1976.
Foi uma longa batalha travada pela concessão oficial. Mas a nossa sorte grande estava na forma como ele passou a gerenciar o canal. Ao contrário das elites regionais como as do Maranhão, Bahia ou Alagoas, por exemplo, ele deu direção totalmente profissional à concessão.
Naquele momento decisivo ele incorporou a face dos nossos construtores da modernidade. Foi profissional. Não fez o jogo do varejo da política. Foi grande. Agiu com grandeza de espírito. Nunca cedeu ao jogo de poder regional que marcou a vida de outras grandes redes regionais Brasil afora.
O Espírito Santo renovou sua vida política de forma extraordinária com o fim do ciclo dos militares. Nenhum dos governadores eleitos a partir da volta das eleições diretas em 1982 saiu das elites nascidas nas fazendas de café. Igual juízo se pode fazer para os prefeitos da Capital e das principais cidades de nosso Estado. De Gerson Camata em 1982 até os dias atuais. De Hermes Laranja em 1985 a eleição de 2020, nenhum dirigente pertenceu mais às elites rurais e nem as fracções da burguesia local.
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Isso não foi obra do acaso. Nossa base econômica se renovou muito, mas a presença forte da Rede Gazeta sempre se fez sentir. Quando o germe da corrupção ameaçou se abater sobre nós, lá estava o Cariê ao lado dos que queriam o bem-estar dos capixabas, fundando o Movimento Empresarial Espírito Santo em Ação, uma ONG empresarial moderna e atuante. Assim era o Cariê em suas posições políticas e empresarias. Um liberal, um artista, um democrata. Por tudo isso podemos colocá-lo entre os personagens que construíram o Espírito Santo moderno.
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