O carnaval é o único período do ano em que o Centro recebe interesse matriz da população de Vitória, fazendo jus à própria designação do bairro. Grande concentração de blocos, reclamação de moradores contra os excessos e, frequentemente, lamúrias sobre a decadência estrutural e econômica experimentada pela região nas últimas décadas. Fora o destaque dado a uma ou outra melhoria pontual, as sentenças costumam ser desestimulantes quanto ao presente e ao porvir.
Antes de tudo, um alerta: este texto não tratará da relevância de se conservar o patrimônio arquitetônico e cultural de uma cidade. Não tratará da imprescindibilidade de se contar a história de um povo por meio de edificações, parques, monumentos e afins. Se o leitor não tiver isso como premissa, que vá ler outra coisa. Deve ser fascinante crer na viabilidade de uma comunidade em que, sem mais nem menos, alguém decida que varanda grande é algo bacana — sabemos que só dá alegria em dois momentos: na compra do apartamento e quando é feito o fechamento com vidro para integração com a sala — e, então, essa ideia suplante fisicamente um prédio representativo de um determinado movimento arquitetônico, ou símbolo de um determinado marco histórico. Mesmo que a ideia dure, digamos, somente uns cinco anos — você tem visto lançamentos recentes com varanda grande?
Pois bem, um exercício honesto de causa e consequência nos auxilia a propor mudanças, de maneira que alguns eventos precisam ser realçados no sobredito processo de decadência. Focaremos três diferentes aspectos — o residencial, o econômico e o burocrático —, mas todos eles com um ponto em comum: o êxodo do dinheiro e do poderio político para a porção leste da ilha de Vitória. Jamais se considerou um desenvolvimento da Capital a oeste, pois o grosso da região, com exceção de Santo Antônio, conviveu ao longo do século XX com assentamentos precários, originando a maioria dos bairros ainda hoje carentes.
Quanto ao aspecto residencial, parte significativa da elite agrária e da burguesia comercial capixabas mantinha casarões na Praia do Canto desde o final do século XIX; um dos remanescentes é o localizado no início da ladeira do colégio Sacré-Coeur, recentemente vendido ao Sesc. O último ponto da linha de bondes era justamente a Praia do Canto, assim como o da pioneira linha de ônibus da Viação Capixaba, criada na década de 1940. Mas eram casarões; densidade populacional ínfima.
O Centro concentrava a maioria das casas e, principalmente, dos apartamentos acessíveis às classes alta e média-alta até meados da década de 1980, momento em que se iniciou uma reviravolta com o protoboom imobiliário da Praia do Canto. As construtoras, subindo vários prédios no bairro, franquearam a lógica urbana de morar num bom apartamento próximo à praia e distante do agitado comércio popular da Vila Rubim.
Algumas obras públicas precederam tal protoboom. Destaco o enrocamento (parede de blocos de pedra dentro d’água) ligando a Praia do Suá à Ilha do Boi, estrutura feita pelo Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis (DNPVN) por conta das correntes marítimas que depositavam areia no canal de acesso à Baía de Vitória e, assim, impossibilitavam a navegação de navios de maior calado.
De acordo com o arquiteto Jolindo Martins Filho, idealizador do projeto de urbanização da Praia do Suá e da Enseada do Suá, a região do enrocamento criou bancos de areia com lodo, convidativos para os urubus que comiam restos de peixe, o que recomendou a constituição, pela Companhia de Melhoramentos e Desenvolvimento Urbano (Comdusa), de esplanadas para saneamento e aproveitamento urbano do local. Ato contínuo, tais obras potencializaram a ocupação e o consequente loteamento das Ilhas do Boi e do Frade, refúgios das famílias mais abastadas do Estado. Com dinheiro em mãos, havia poucas razões para permanecer no Centro.
EPICENTRO DE NEGÓCIOS
A questão comercial-econômica seguiu a tônica da habitacional: o empresariado e grandes escritórios identificaram a Enseada do Suá como novo epicentro de negócios, abrindo a porteira com a inauguração do Palácio do Café. A instalação, na região, dos representantes do à época mais poderoso setor econômico do Estado encheu os olhos de profissionais liberais e demais prestadores de serviço.
E a inauguração do shopping Vitória, importando o modelo varejista norte-americano, foi um baque para os lojistas do Centro, já esvaziados pelo crescimento do polo comercial de Campo Grande — boa parte da clientela de Cariacica e da região serrana passou a não mais cruzar a ponte. Um aparte: é verdade que o Centro ainda concentra muitos profissionais liberais, e uma das apostas para o bairro é incentivar a permanência desse subsetor de serviços e de seus herdeiros laborais.
Por derradeiro, a burocracia igualmente debandou: a Assembleia Legislativa se mudou em 2000 para a Enseada do Suá; a Prefeitura de Vitória construiu o Palácio Jerônimo Monteiro, em Bento Ferreira, e simplesmente demoliu a antiga sede da rua Sete; a Câmara de Vereadores inaugurou em 2003 o ed. Paulo Pereira Gomes, também em Bento Ferreira, para abrigar os gabinetes e boa parte do pessoal administrativo; a Justiça Federal construiu em 2010 seu novo prédio, na Ilha de Monte Belo; o Tribunal Regional do Trabalho inaugurou obra faraônica na Enseada do Suá; e os Fóruns Cível e Criminal de Vitória foram movidos para imóveis alugados na Enseada do Suá e na Mata da Praia, respectivamente.

Claro que órgãos públicos não devem se empoleirar em espaços insuficientes para as necessidades tanto de servidores quanto de cidadãos visitantes; mudanças são sempre bem-vindas. Mas é curioso o pronto descarte do Centro como destino dessas mudanças, sobretudo ao se considerar que problemas como falta de estacionamento poderiam ser amenizados pela conversão de estruturas ociosas em edifícios-garagem.
Feita essa recapitulação, procurei saber o momento em que se passou a falar em revitalização, assim como o que foi proposto. Sei que o termo “revitalização” desagrada parte do público porque, realmente, o Centro não morreu; vejo muitos moradores nas praças à noite e há belas opções de lazer. Por isso disse, no título, que as luzes nunca se apagaram. O alto número de estruturas ociosas e/ou deterioradas, porém, é um constrangimento inequívoco, que remete a abandono.
Contorcionismos retóricos só favorecem paralisias. Aliás, quem arriscaria afirmar que Vitória é uma cidade dois séculos mais antiga do que Ouro Preto e São João del Rey, por exemplo? Sucessivas administrações estaduais e municipais destruíram construções coloniais, imperiais e do início da República, além de pouco se dedicarem a medidas estruturais para o resgate da notoriedade do Centro.
Em pesquisa na biblioteca virtual do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), encontrei matéria d’A Gazeta de 25 de junho de 1985 anunciando que o “Centro de Vitória parece abandonado”, dada a onipresença de camelôs nas calçadas, o acúmulo de lixo, as fachadas de edificações tomadas por cartazes e a falta de cuidado com escadarias.
Prosseguindo, me impressionou o protagonismo do departamento de arquitetura e urbanismo da Ufes na empreitada de recuperação: matéria d’A Gazeta de 9 de maio de 1986 aborda um trabalho da então estudante Renata de Almeida relativo à transformação arquitetônica do Centro, em que se demonstra a pressão do capital imobiliário sobre o poder público para alterações na legislação urbanística durante as décadas de 50, 60 e 70. O texto ainda menciona um trabalho de quatro de suas colegas de curso: Isabella Muniz, Tânia Gonçalves, Márcia Zanotti e Clemir Meneghelli, em que se aponta que o crescimento imobiliário baseado nos ramos financeiro e burocrático asfixiou a vida noturna do Centro, bem como que as políticas públicas de mobilidade estavam priorizando automóveis e retirando espaços de convivência e de circulação dos pedestres.
Em matéria de 6 de maio de 1990, o tom passa a ser apocalíptico: um articulista diz não existir nada pior do que “conviver com uma capital chamada Vitória, cujo centro da cidade parece fazer questão de evidenciar toda sua decadência”, e chega a sugerir, amparado pelo professor da Ufes Marco Antônio Cypreste, a meu ver mui equivocadamente, a demolição dos armazéns do porto. Já uma matéria d’A Gazeta de 21 de junho de 1996 destaca a mudança de perfil do comércio do Centro, que passou a ser exclusivamente popular, e o fato de 40% das lojas da Galeria Antares — primeiro centro comercial relevante da cidade — se encontrarem fechadas.
ATUAÇÃO DO PODER PÚBLICO
Passemos, então, às medidas já tomadas ou propostas pelo poder público. Matéria d’A Gazeta de 5 de abril de 1991 diz que desde 1985 a prefeitura concede isenção de IPTU para aqueles que realizem a recuperação de imóveis do Centro com valor histórico e cultural, mas que, até aquele momento, ninguém havia utilizado o benefício (quiçá nem mais esteja vigente na atual legislação). O texto ainda cita a intenção de implantação do estacionamento rotativo como forma de mitigar o caos no trânsito, e da transformação de alguns dos galpões do porto em espaço cultural e gastronômico — ambas as medidas foram concretizadas apenas recentemente, a última delas com capital privado, após o leilão da Codesa. Outra matéria de 30 de maio de 1993 informa que a Prefeitura estava restaurando cinco escadarias e algumas praças, repaginando o calçadão da rua Sete — felizmente exclusivo para pedestres até hoje, mas precisando de novas intervenções — e que contava com aportes do governo estadual e da iniciativa privada para recuperação de cerca de 300 prédios na região.

Mais à frente, matéria d’A Gazeta de 10 de junho de 2000 aborda um projeto aprovado pela Câmara Municipal de transformar a rua Duque de Caxias, uma das principais artérias da praça Costa Pereira e que ainda conta com bonitas edificações, numa rua 24 horas. Nunca saiu do papel — e não creio que seria exitoso. Outra matéria, de agosto de 2010, lista alguns dos principais imóveis vazios ou subutilizados do Centro, quatro deles transformados, desde então, em moradias populares por meio do excelente projeto Morar no Centro: hotel Sagres, hotel Tabajara, hotel Estoril, hotel Palace, hotel Majestic, ed. Santa Cecília, ed. Francisco Teixeira Cruz e a antiga sede da Escelsa.
Já uma matéria de 16 de novembro de 2010 anuncia verbas federais de R$ 64 milhões, oriundas do Programa de Aceleração do Crescimento para Cidades Históricas (PACH), voltadas à realização de quase 40 ações, cujas principais eram as seguintes: restauração da Fafi e da Casa Porto das Artes Plásticas; reurbanização da praça Getúlio Vargas e das calçadas e ciclovias da av. Beira-Mar; restauração do Mercado da Capixaba; ampliação da praça João Clímaco, com alterações viárias e inauguração de biblioteca; drenagem, pavimentação e iluminação dos entornos das igrejas Nossa Senhora do Rosário e São Gonçalo; e implementação de serviços de videomonitoramento. Afora a Fafi, a Casa Porto das Artes Plásticas e o Mercado da Capixaba — esse último reinaugurado na atual gestão, ou seja, praticamente quinze anos após a matéria em comento —, parece-me que o restante não foi providenciado.
Deixei por último uma matéria d’A Gazeta de 28 de março de 1999 pois ela aborda duas das minhas principais bandeiras para o ponto de viragem do Centro, acerca das quais falarei mais à frente. O então prefeito anunciava um projeto em parceria com a Escelsa e com a antiga Telecomunicações do Espírito Santo (Telest) para aterrar toda a fiação exposta da av. Jerônimo Monteiro e da rua Duque de Caxias; e incentivos para restauração das fachadas e padronização dos letreiros nas duas vias, o que se somaria à já implantada isenção de IPTU para os comerciantes que retirassem os letreiros e pintassem a edificação de acordo com projeto fornecido pela Prefeitura.
Os planos foram realizados do avesso: atualmente a fiação é tão densa e emaranhada que serviria de palco para um show de mágica do Houdini; e os letreiros elevam um rabisco infantil ao suprassumo do bom-gosto estético, tamanha a anarquia de cores e formatos.
Pois bem, esse apanhado nos permite deduzir o seguinte: os esforços públicos ao longo das últimas décadas se concentraram em redução ou isenção de tributos e em reformas pontuais de edificações, algumas delas transformadas em moradias populares. Não estou desabonando tais medidas, pelo contrário: a recente prorrogação da redução do ISS (2%, o mínimo permitido pela legislação federal) para uma série de empreendimentos que se instalarem na região, por exemplo, promete maximizar a ocupação dos prédios comerciais — o que, por óbvio, é fundamental para a sua conservação. Mas não bastam.
O ponto de viragem demanda fenômenos estruturais, no sentido de efetivamente modificarem a interação da população com o espaço e de ressignificarem o espaço no imaginário popular. Dois desses fenômenos me parecem cruciais: um é espontâneo, regido basicamente pelas dinâmicas de mercado; e outro é provocado pelo poder público, que dispõe de meios para forçar a migração do capital público e privado para o Centro.

Comecemos pelo espontâneo, que consiste no retorno das pessoas ao bairro para fins de moradia. Uma assertiva verídica é muitíssimo mal interpretada: local seguro é aquele em que as pessoas estão na rua. Não se está dispensando o policiamento; em verdade, ele é crucial num país que apresenta altas taxas de crimes patrimoniais e contra a vida. Mas a sensação de segurança aumenta exponencialmente quando seus vizinhos estão frequentando praças, comprando pão à noite, fazendo hora num barzinho, passeando com as crianças... atividades típicas de bairros residenciais e sem predominância de população idosa. Como corolário, tem-se a frutificação de um comércio qualificado, voltado à satisfação cotidianas dos moradores.
Há muitos imóveis residenciais vagos no Centro; outrora o bairro mais populoso de Vitória — de longe —, a população decaiu, em 2010, somada à do Parque Moscoso, para 11.600 habitantes, e para 10.781 em 2022, segundo os censos do IBGE. O IJSN identificou que Parque Moscoso, República e Centro possuem a estrutura populacional mais envelhecida da capital; no Parque Moscoso, 17,9% da população possui mais de 65 anos, tendo 138 pessoas acima de 65 anos para cada grupo de 100 pessoas menores de 15 anos.
De fato, não há como forçar pessoas a morarem em um local, exceto no contexto de projetos habitacionais populares; a boa notícia, contudo, é o gradual crescimento do interesse — atestado por colegas corretores — de jovens e de casais de classe média por imóveis do Centro, especialmente para compra. Originalmente concebidos como bairros da classe trabalhadora, Jardim da Penha e Jardim Camburi, frutos da “expansão para o norte da Ilha”, já estão praticando preços proibitivos para a esmagadora maioria — tanto casa própria quanto aluguel, vale frisar —, tornando novamente atraentes os apartamentos espaçosos e charmosos do Centro, vários deles com privilégios como vista para o canal ou proximidade de um ótimo parque público.
Quanto à migração forçada do capital público e privado para o Centro — fenômeno a ser provocado pelo poder público —, congrego-a na realização de obras caríssimas e necessárias, parte delas financiada diretamente pela parcela mais abastada da cidade. O aterramento da fiação em todo o bairro custaria uma fortuna, além de depender da cooperação da concessionária estadual de energia elétrica, mas promoveria uma das maiores repaginações urbanísticas da história da cidade.
O panorama destacado dos bairros da zona sul e do Centro do Rio de Janeiro, ou mesmo da Curva da Jurema, demonstram que, superadas questões primárias como saneamento básico e mobilidade, as cidades devem investir na substituição do posteamento.
Uma possível forma de financiamento de parcela da obra é a contribuição de melhoria (um tributo), porquanto os imóveis das áreas contempladas indubitavelmente galgariam valorização no mercado; e, como meio de transformar tal tributo num “subsídio cruzado” — a lei municipal certamente seria objeto de ações diretas de inconstitucionalidade, mas vale a tentativa —, poderia ser elaborado um projeto-piloto de aterramento beneficiando Centro e Praia do Canto, por exemplo.
Nessa fórmula de subsídio cruzado, a despeito do beneficiamento de ambos os bairros, apenas os proprietários da Praia do Canto arcariam com o tributo, cobrado em sua alíquota máxima para apoiar o financiamento da íntegra do projeto. Ricos pagando proporcionalmente mais em prol do bem coletivo, conforme o princípio constitucional da capacidade contributiva e noções elementares de civilização.
Inclusive, considerando que a contribuição de melhoria só pode ser recolhida após a efetiva valorização imobiliária, e tomando tal valorização como certa — o que torna a receita decorrente do tributo um evento futuro e certo —, a prefeitura poderia contrair empréstimos junto a instituições financeiras estaduais ou federais — algo permitido pelo art. 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal — a juros módicos para viabilizar a empreitada.
Hoje, o diferencial do Centro é estético; tudo o que obstaculizar essa diferenciação em relação às demais áreas da cidade deve ser eliminado. Daí, a relevância da padronização dos letreiros nas principais vias comerciais, ou ao menos da imposição de restrições de layout. A consequência não será perda de clientela, mas, sim, um aumento generalizado do interesse em circular na região.
Marquises que não constam dos projetos originais das edificações com algum valor histórico-cultural precisam ser demolidas; além do risco de seu estado precário, servem apenas de “puxadinho” para condensadores de ar-condicionado, descaracterizando sobremaneira o prédio. Ruas asfaltadas poderiam receber paralelepípedos ou bloquetes claros, iniciativa já adotada em cidades do interior do Estado para diminuir a sensação térmica, melhorar o escoamento pluvial e conferir pacatez ao ambiente.

Outra medida pertinente está prevista em uma das melhores leis vigentes no país, o Estatuto da Cidade: consórcios imobiliários. Proprietários de imóveis transferem ao poder público municipal seu imóvel deteriorado ou subutilizado e, após a realização de obras de “retrofit”, recebem, como pagamento, unidades imobiliárias do mesmo empreendimento, cujo valor será correspondente ao valor do imóvel antes da execução das obras.
Bairros nobres de Vitória têm passado por um boom imobiliário, e as construtoras estão tendo de pagar vultosas outorgas do direito de construir; então, uma lei municipal poderia pontualmente substituir tais pagamentos de outorga por obras de “retrofit”, no âmbito de consórcios imobiliários, em imóveis selecionados do Centro.
As construtoras têm a expertise e os meios necessários para a realização de obras céleres e competentes. Quer construir na Enseada do Suá? Ok, dê um banho de princesa em determinados prédios do Centro como compensação. Capital privado tendo seu fluxo forçado pelo poder público.
O Estatuto da Cidade ainda nos fornece instrumentos para transferência forçada de imóveis ao poder público: o IPTU progressivo e a desapropriação mediante pagamento em títulos da dívida pública, essa última exequível após cinco anos de cobrança do IPTU progressivo. Antes do uso desses instrumentos, contudo, é preciso a promulgação de lei municipal sujeitando determinados imóveis subutilizados ou não utilizados a parcelamento ou a utilização compulsórios, com fixação das condições e dos prazos para implementação das referidas obrigações.
Na mesma toada, o Código Civil contém dispositivo estabelecendo que o imóvel que o proprietário abandonar, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado como bem vago mediante processo administrativo e passar, três anos depois, à propriedade do município, presumindo-se de modo absoluto a intenção de abandono quando, cessados os atos de posse, o proprietário deixar de cumprir os ônus fiscais.
Ou seja, imóvel adquirido a custo zero pela municipalidade. São muitas as possíveis destinações: transformação em moradia popular ou sede de órgãos públicos, conversão em edifício-garagem, ou até demolição para abertura de espaço. Pequenas praças, jardins ou academias populares em meio ao Centro, onde antes estavam imóveis abandonados, não seriam má ideia.
Inclusive, o tema dos órgãos públicos merece um aparte: as capitais brasileiras já comprovaram por A+B que não se conseguem manter uma região central ativa meramente com presença da burocracia. Os servidores vão embora ao final do expediente. De toda sorte, em períodos de pouca inspiração, esses órgãos públicos seguram o rojão e evitam a degradação total — recentes iniciativas em São Paulo atestam isso.
Então, considerando que órgãos do Poder Judiciário e do Poder Legislativo obrigatoriamente recebem percentuais predefinidos da receita corrente líquida, a alocação de parte desses recursos em novas sedes situadas no Centro — preferencialmente edifícios históricos após “retrofit” — representaria uma contribuição definitiva à cidade e ao esforço de recuperação. Repito o afirmado anteriormente: falta de estacionamento pode ser amenizada com edifícios-garagem.
Dito isso tudo, numa cidade com tantos espaços proibitivos — e o vistoso aumento do preço do metro quadrado, desacompanhado de aumento do poder aquisitivo real da população ou de redução da desigualdade salarial, tende a acirrar esse quadro —, é vital a conservação e a ampliação dos patrimônios considerados comuns. E não usei o termo “vital” em sentido totalmente figurativo: o molejo da coesão social, que assegura nossa existência enquanto comunidade, depende de alguns poucos elementos aglutinadores.
Zelar pelo patrimônio histórico-cultural e pela identidade do nascedouro de um aglomerado urbano significa cativar uma lembrança, ainda que remota, de que há algo além da nossa sacra privacidade. E que esse algo é um dos responsáveis por nos manter aqui — já parou para pensar por que um punhado de pessoas decidiu residir tão próximas umas das outras? Será mera necessidade econômica? Enfim, eu disse no início da coluna que não falaria sobre isso. Basta.
Não é à toa que nas alturas do topo da Cidade Alta foi construída a primeira igreja matriz no século XVI, onde hoje está situada a Catedral Metropolitana. Símbolo do predomínio de Deus sobre os homens. E se Ele, hoje, do alto de Sua sabedoria, orientasse-nos, tenho certeza de que diria que é o momento de aproveitarmos os instrumentos jurídicos e econômicos disponíveis para cuidarmos com mais carinho daquilo que nos é tão caro.
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