Laurentino Gomes, festejado autor dos best-sellers "1808", "1822" e "1889", todos escritos com um texto jornalístico de grande qualidade, de leitura leve e fácil, sem perder a densidade histórica, partiu para uma nova empreitada intelectual e editorial. Escrever em três volumes uma obra sobre a escravidão brasileira.
Essa abominável instituição que foi um dos maiores – senão o maior – absurdos da história da humanidade. Foram mais de quatro séculos de uma selvageria sem fim. Suplícios, torturas, estupros, assassinatos, tudo feito debaixo da aprovação da Igreja Católica, conivente com todo o processo.
Até a Santa Inquisição protegia esse que foi um dos piores momentos da história da humanidade, não só pela perversidade, mas também por sua longa duração. Devo alertar que há momentos tão duros na leitura, que temos que parar para respirar e voltar a ler. Fico pensando, como um país tão mergulhado nessa história pode superá-la para construir-se melhor. A extrema-direita recente em nosso país está aí mesmo para mostrar as dificuldades dessa convivência com o passado.
O autor já havia publicado em 2019 o primeiro volume, que cobriu mais de 250 anos da história dessa obra perversa dos países tidos com os mais evoluídos do mundo. Tratou desde o primeiro leilão de cativos africanos em Portugal, em 1444, até a morte de Zumbi dos Palmares em 1695.
Este segundo livro concentra-se basicamente no século XVIII, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no Brasil e pela disseminação de lavouras de uso intensivo de mão de obra em toda a América. Começa em 1694 e vai até a independência. Trata de forma muito interessante o cotidiano do funcionamento da sociedade colonial brasileira, no qual a presença africana era sinônimo de trabalho. O corpo escravizado movimentava tudo.
De tal forma a escravidão estava tão enraizada em nossas instituições imaginárias que quando a Corte chegou ao Brasil em 1808 ela estava literalmente falida e o tráfico era um negócio gigantesco. Metade dos trinta maiores comerciantes do Rio de Janeiro eram traficantes de escravos, respeitados e reverenciados. Foram os grandes doadores e apoiadores da monarquia, fartamente recompensados com títulos de nobreza e honrarias. Um dos maiores traficantes, Elias, o Turco deu ao príncipe regente sua própria casa construída numa Chácara em São Cristóvão. Sede do Museu Nacional que foi consumida em pavoroso incêndio em 2018.
Creio que o maior mérito desse segundo volume de escravidão, que traça sua história desde o início da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da Corte de dom João ao Brasil, talvez seja sua construção subjetiva, além de mostrar como os escravos urbanos ganharam condições de comprar suas alforrias e criar um outro espaço na sociedade colonial. A história de Chica da Silva ilustra bem essa etapa histórica.
Laurentino Gomes mostra as estratégias de sobrevivência entre os escravizados frente ao poder opressor dos proprietários de escravos. Mostra também as estratégias de controle por parte dos senhores que, por exemplo, dificultam a reunião de pessoas da mesma etnia, que falavam a mesma língua, tinham os mesmos deuses e compartilhavam valores. Essa separação teve duas consequências, a primeira é que as revoltas foram muito dificultadas por esse procedimento. Outra é que juntamos aqui povos que na África viviam a até quatro mil quilômetros de distância. Criamos nossas Áfricas.
É dessas Áfricas brasileiras que produziram religiões, festas e celebrações próprias dessa nova situação que nasceram muito da força da nossa cultura popular de raiz africana, nesse país de forte tradição negra.
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Trata-se de uma grande obra. Gigantesca na produção de informação, com boas fontes, que nos ajuda a compreender a produção social desse país desigual, desumano e racista. Nos ajuda a entender porque esses temas não nos abandonam, não os superamos. De vez quando voltam como pesadelos, como esse de agora, vindos de um capitão desvairado.
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