As ruínas da igreja do Sítio Histórico do Queimado, na Serra
As ruínas da igreja do Sítio Histórico do Queimado, na Serra. Crédito: Edson Reis

“Insurreição do Queimado”, clássico de Afonso Cláudio, completa 140 anos

Entre os vários predicados dessa obra seminal, apontamos o livro como o primeiro livro-reportagem feito no Brasil, conforme pesquisa que realizamos e publicamos em 2023

Tempo de leitura: 5min
Publicado em 16/11/2024 às 10h05
  • José Antonio Martinuzzo

    É pós-doutor em Psicanálise (UERJ), doutor em Comunicação (UFF), professor Titular na Ufes, jornalista e escritor

O clássico da literatura capixaba “Insurreição do Queimado – Episódio da História da Província do Espírito Santo” completa neste mês de novembro 140 anos de sua escrita por Afonso Cláudio. Entre os vários predicados dessa obra seminal, apontamos o livro como o primeiro livro-reportagem feito no Brasil, conforme pesquisa que realizamos e publicamos em 2023.

“Insurreição do Queimado” foi concluído em novembro de 1884, com capítulos publicados aos domingos nas primeiras páginas da “Província do Espírito Santo”, ao longo de 1885. O jornal, devotado à causa republicanista, foi fundado em 1882, por Cleto Nunes e Muniz Freire.

Afonso Cláudio tinha 25 anos quando concluiu o livro, basicamente a partir de relatos orais, dado o desaparecimento dos documentos oficiais sobre a insurreição. O autor relata que a última notícia do processo referente ao caso foi obtida em 1875 num cartório da capital.

A Insurreição

Sumariamente, a “insurreição” ocorrida na localidade de Queimado, atualmente município da Serra, foi uma revolta efetivada por cerca de 200 escravizados, brutalmente sufocada pelas forças imperiais em dois dias.

A rebelião eclodiu a 19 de março de 1849, mediante a frustrada alforria prometida pelo frei Gregório de Bene a escravizados em troca da construção da Igreja de São José, que estava sendo inaugurada justamente naquele dia. Com trabalho em dias de santos e em noites de lua cheia, a igreja começou a ser construída em 15 de agosto de 1845.

Foram quase quatro anos de trabalho em torno de uma ilusão de libertação alimentada por Gregório de Bene, frade capuchinho italiano que chegou ao Estado em 1844. O frei partiu em 26 de setembro de 1849, deixando para trás um capítulo de horror na história da luta antiescravagista nas terras capixabas.

Perseguições, assassinatos, torturas, condenações à morte e a suplícios em espaços públicos, entre outras trágicas imputações aos envolvidos, marcaram o desfecho da insurreição.

As lideranças foram ferozmente perseguidas. Dos cinco condenados à morte, Chico Prego e João da Viúva Monteiro foram executados em praça pública na Serra e no Queimado, respectivamente nos dias 8 e 11 de janeiro de 1850.

Jovens republicanistas davam abrigo aos fugitivos nas fazendas de suas famílias, inclusive dos sentenciados à forca. De fuga em fuga, conforme conta Afonso Cláudio, “Domingos (Corcunda) e João (Pequeno), Elisiário e seu irmão João morreram no isolamento das montanhas vitimados simultaneamente pela tuberculose e anemia”.

“Carlos logrou sobreviver aos companheiros”, registra Afonso Cláudio. Este, o mais jovem dos líderes revolucionários, foi uma das fontes alcançadas pelo autor para escrever sua narrativa, inédita a seu tempo, e que só agora viria a ser conceituada: o livro-reportagem.

Grande reportagem

No livro “Insurreição do Queimado – 140 anos do pioneirismo de Afonso Cláudio no livro-reportagem nacional”, lançado ano passado, relatamos o resultado de pesquisa científica feita na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) que aponta o caráter inédito da obra no segmento de confluência entre literatura e jornalismo.

Tradicionalmente, considera-se “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, publicado em 1902, como o pioneiro do gênero do Brasil. Esse mercado é sucesso no país, incluindo best-sellers como “Escravidão”, trilogia de Laurentino Gomes; “Rota 66 – A história da polícia que mata”, de Caco Barcellos; e “Estação Carandiru”, de Drauzio Varella.

No nosso livro, como parte do processo para verificar a hipótese do ineditismo de Afonso Cláudio, retraçamos o percurso da insurreição e seus desdobramentos, a partir de uma seleção de trechos da publicação original.

O recurso à literalidade, além de visar a uma homenagem a este personagem ímpar da história espírito-santense, busca aproximar o público contemporâneo de um texto corajoso e inovador, ensejando mesmo um convite à leitura na fonte.

O livro também rememora a biografia do autor e traz um panorama sumário acerca do escravagismo nas terras capixabas, a partir de um dos marcos da resistência dos escravizados entre nós, a “Insurreição do Queimado”.

Jornalista e republicanista

Afonso Cláudio de Freitas Rosa também é autor de clássicos nas áreas de direito, folclore, literatura, ciências sociais. Foi jornalista, advogado, magistrado, escritor e professor.

Com a Proclamação da República, tornou-se o primeiro presidente do Estado do Espírito Santo – aos 30 anos. Governou por 10 meses. As disputas de poder nas esferas federal e local levaram 12 pessoas à chefia do governo, entre 1889 e 1891.

Foi desembargador (1891-1920) e presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. Na Academia Espírito-Santense de Letras, foi o primeiro ocupante da Cadeira Número 1, sendo patrono da Cadeira Número 27.

Com a aposentadoria, em 1920, Afonso Cláudio mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a dar aulas de Direito, em Niterói. Faleceu em 1934, na cidade do Rio de Janeiro.

Nascido em 2 de agosto de 1859, na Fazenda Mangaraí, no então município de Porto de Cachoeiro de Santa Leopoldina, Afonso Cláudio foi batizado, em 9 de outubro de 1859, exatamente na Igreja de São José do Queimado, templo cuja construção está no epicentro da revolta que retrata num livro inaugural – tanto da sua vasta obra quanto do gênero de livro-reportagem no Brasil.

SERVIÇO:

Confira trechos do livro-reportagem de Afonso Cláudio:

Na Serra, “depois de feita a última unção religiosa, Prego de mãos atadas galgou os degraus da escada, seguido do carrasco; em seguida o executor passou-lhe a corda ao pescoço, tendo antes ligado à trave o instrumento mortífero, impeliu o rebelde para o espaço e arrimado à corda cavalgou no pescoço do negro, apoiando nas mãos ligadas os pés para fazer maior pressão. Alguns momentos depois era a corda cortada e atirado no chão o corpo; como, porém, ainda não tivessem cessado as agonias, o executor lançou mão de um madeiro que se achava ao lado da forca e esmagou as partes, o crânio, os braços e as pernas do justiçado”.

“Após a tirania da lei, a selvageria do homem [...]. A manhã conservava-se clara; o sol derramava uma luz abrasadora. Estava feita a missão da justiça: a autoridade sentia-se restituída à amplitude de seu poderio arbitrário. Às janelas abertas desde o começo da execução, mantinham-se em agradável compostura velhos e moços. [...] O acompanhamento mortuário parecia triste pela célere terminação da cena. Quantos não sentiam desejos de pedir ‘bis’”.

“João da Viúva Monteiro recebia na povoação do Queimado igual prêmio à sua audácia. [...] Nada faltou ao cerimonial mortuário; apenas a multidão foi menos numerosa e os espectadores mais humanos. João sofreu os flagelos da carne e do espírito; triturado, ralado, quase desconjunto, viu na forca o termo das mortificações. Quando o carrasco o impeliu, fez ecoar um ‘ah!’ tão profundo e íntimo que parecia uma saudação à morte, porque o restituía à liberdade do túmulo”.

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