Houve um período durante a pandemia em que passei um bom tempo sem ler obras de ficção. Até por estar me preparando para cursar o mestrado, queria aproveitar o tempo livre para engolir o máximo de conteúdo possível sobre a temática da pesquisa, fossem artigos científicos ou livros publicados por pesquisadores.
Eu, que em 2020 tive contato com algumas das obras que passaram a ser favoritas e determinantes na minha formação como leitora — foi o ano em que li “Fique Comigo”, “Torto Arado” e “O Deserto dos Tártaros” —, tive um 2021 inundado por textos de 15 páginas nas regras da ABNT.
Durante os dois anos de mestrado, o volume de leitura demandado me afastou ainda mais dos romances, contos, crônicas e belezas da literatura. As obras que surgiam em meu caminho eram colocadas numa lista de desejos da Amazon chamada “Leituras para depois da dissertação”. Voltar a ler recreativamente, com frequência, parecia um sonho distante.
Teimosa, cheguei a concluir alguns títulos memoráveis em viagens e fins de semana de procrastinação. Conheci Sally Rooney e Rosa Montero. Me rendi à Ursula K. Le Gun e Sylvia Plath. Mas nada se comparava à frequência que um dia já tive, devorando clássicos em questão de horas.
A cobrança e a responsabilidade interna geradas pelo desejo de prosperar academicamente me levaram a uma conclusão exagerada, típica do meu hiperfoco inseguro: ler ficção era um desvio de percurso desnecessário, prejudicial ao processo de criação formal e mecânico da pesquisa.
Até que em julho de 2023, no auge da compilação de dados e finalização dos capítulos, a curiosidade por uma obra muito falada nas redes sociais me levou a comprar alguns livros da lista. Entre eles, “Tudo é Rio”, de Carla Madeira. Me planejei para ler apenas algumas páginas e tentar entender todo o apelo e comentários.
Quando me dei conta, as horas passavam e as dores de Lucy e Dalva já eram minhas. Não sabia se estava horrorizada com a história e a falta de pudor ou maravilhada com a prosa crua e literal da autora, que mexeu com minhas crenças sobre compaixão e perdão.
“Tudo é Rio” incomodou profundamente. Trouxe memórias de outras leituras e aprendizados. Despertou reflexões sobre feminismo, comunidade, papéis sociais… temáticas que me impactam pessoal e profissionalmente. Relembrei que a literatura, para além do deleite e lazer, também é retrato da realidade e reflexo dela. Também é objeto de pesquisa e instrumento de trabalho.
A partir dali, não consegui mais ignorar a ficção. Voltei a me interessar especialmente por histórias de mulheres, e conheci uma nova geração de autoras brasileiras que têm explorado temáticas femininas antes ignoradas . Solidão, abandono, envelhecimento, maternidade, irmandade, territorialidade, sexualidade e tantos outros aspectos culturais do que é ser mulher se revelam nas páginas de nomes como Aline Bei, Lorena Portela, Elisama Santos, Socorro Accioli, e da própria Carla Madeira.
As experiências das mulheres retratadas, mesmo que às vezes atravessadas por elementos fantásticos e representadas por personagens fictícios, me pareceram tão reais quanto as minhas. Ajudaram a examinar questões pessoais e a digerir dores e fracassos. Se a expectativa era fugir da realidade, o que aconteceu foi exatamente o contrário: me reconectei com ela.
Com ajuda da ficção, fiz minha própria coreografia do adeus. Me distraí, para em seguida voltar a prestar atenção no que precisava ser feito. “E a vida, como metáfora de um rio, tudo traz, tudo leva, tudo lava”.
Das divergências acadêmicas entre teoria e prática e da eterna dúvida sobre a vida imitar a arte ou a arte imitar a vida, escolho não escolher. Descobri que, sem a literatura para deleite da alma, não terei fôlego para produzir a ciência que desvenda a vida.
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