Tal qual um conto clássico sobre as origens do mundo, "Mães Paralelas", nova produção do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, inicia-se com um romance avassalador entre um homem e uma mulher. É o ponto de partida de um clássico conto almodovariano que, ainda que preserve o conhecido estilo de seu auteur, parece bastante interessado em certo pano de fundo político, como poucas vezes visto nas obras do cineasta.
Janis, como Janis Joplin, nos é apresentada com uma máquina fotográfica nas mãos. Ainda na sequência inicial, veremos em close: a câmera em primeiro plano, com o rosto da protagonista colado a ela, a máquina apontada para nós, espectadores, como se nos olhasse de volta. Se fotografar é capturar o tempo através de uma lente, buscando, através dos mecanismos da máquina, o registro preciso de um instante, é possível dizer que Janis age como uma espécie de repositório vivo de memórias imprecisas, ainda em construção, ainda em movimento, ainda não capturadas.
Como é de se esperar de um filme do Almodóvar, as relações não são tão simples: Janis não manterá seu caso com Arturo, o antropólogo com quem se relaciona no início do filme, pai de sua filha; Ana, companheira de quarto de Janis no hospital onde ambas dão à luz, tem um histórico familiar conturbado; até mesmo a interação entre Janis e a primeira babá da menina Cecilia parece mergulhada em incomunicabilidade. É como se a protagonista, a partir do nascimento da filha, passasse a viver exclusivamente para ela, em um estado de construção da memória materna — que será definitivamente alterado pela causalidade da trama.
É, inclusive, essa causalidade narrativa que desmonta e reorganiza as imagens. As vívidas cores tão presentes no cinema de Almodóvar, vez ou outra, permitem-se invadir por sombras que tensionam a configuração luminosa do quadro — as luzes baixam, às vezes fazendo desaparecer completamente a profundidade do plano, acentuando contornos e expressões faciais.
Essa reconfiguração constante se repete, sobretudo, nas sequências que observam essa relação entre Janis e sua bebê. Afinal, esse enredo aparente que se move na superfície da tela, a história de uma mãe solteira e sua filha e as questões que se amontoam e explodem ao redor dessa relação, aos poucos desmonta-se para revelar um subtexto diretamente ligado à memória dos antepassados da protagonista.
Nesse sentido, Janis acabará por revelar-se uma personagem dedicada não apenas aos seus processos de busca e construção de memória, mas também aos mecanismos de constituição da verdade. Para ela — e para o discurso implícito na narrativa —, é impossível conceber quaisquer registros memoriais que não estejam fundamentados na realidade dos fatos (fílmicos e extra-fílmicos). Assim, quando a grande revelação finalmente surge e todos os componentes dramáticos se completam em tela, não há nenhuma reviravolta inesperada, nenhum plot twist sofisticado, apenas aceitação da consequência imediata dos fatos.
"Mães Paralelas", como um bebê nascido de um encontro intenso, é um filme concebido por discursos que se interligam e se alimentam mutuamente em uma correlação de imagens, movimentos e sugestões, tal qual uma equação cujo resultado comprova a regra: a impossibilidade de Janis em relacionar-se mais plenamente com as pessoas e o ambiente ao seu redor só desmorona quando todo o mistério se resolve e, dissolvendo-se da trama, permite que Almodóvar lance mão, finalmente, de seu comentário político a respeito da ditadura franquista.
Essa correlação de imagens, inclusive, produz sentidos por si só: a câmera com a qual Janis registra fotos de seu affair, ainda no início do filme, é a mesma com a qual Arturo, em um momento extremamente oposto dentro da narrativa, fotografa evidências de sua descoberta antropológica — instantes opostos que compõem, igualmente, um movimento de produção de memória.
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Por fim, "Mães Paralelas" somará a esse conto sobre duas mães solteiras eternamente coligadas pelo encadeamento das ações fílmicas, uma outra fábula materna, exterior ao filme, uma História com H maiúsculo, a respeito de uma Mãe cujas entranhas são incapazes de conceber inverdades e que, sob a tutela do Tempo, a tudo revelam.
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