Jaider Esbell: a língua Tupiniquim está registrada de algum modo graças à resistência do povo e aos pesquisadores que documentaram essa parte da cultura que hoje é retomada vertiginosamente
Jaider Esbell: a língua Tupiniquim está registrada de algum modo graças à resistência do povo e aos pesquisadores que documentaram essa parte da cultura que hoje é retomada vertiginosamente. Crédito: Jaider Esbell/Divulgação

Nação Tupiniquim resistiu ao processo histórico colonial e está viva

A língua Tupiniquim está registrada de algum modo graças à resistência do povo e aos pesquisadores que documentaram essa parte da cultura que hoje é retomada vertiginosamente

Publicado em 10/04/2021 às 02h03
  • Jaider Esbell

    É artista, escritor e produtor cultural indígena

Por onde começar uma narrativa sobre a agentividade aplicada na retomada de uma determinada identidade originária, para não dizer indígena? Considerando o contexto colonial e o caso específico da cultura Tupiniquim, abre-se um leque de realidades ainda ocultas para o campo das pesquisas e atuação ampla, em artes.

Parece-me que é sobre a contra-colonialidade que estamos falando. A contra-colonialidade seria então um movimento além da decolonialidade, pois o que os difere é a marcação de que os corpos atuantes sejam exatamente atores, sujeitos ou agentes que são, ou estão no alvo direto da ação colonial, portanto indígenas.

A rigor, quem deveria decolonizar seriam os colonizadores, ou seus descendentes, nesse caso o brasileiro comum, que tem em alguma parte da Europa a sua raiz identitária. Quando pessoas nativas, ou indígenas, se conscientizam de suas matrizes originárias e negam o genocídio lutando para alcançar de volta o rio maior de suas vidas, temos então casos de contra-colonialidade.

O levante cultural indígena no Brasil é uma realidade contra-colonial cheia de evidências que vem extrapolando os campos clássicos das pesquisas, seja a antropologia, a linguística ou a etnologia. Quando indivíduos coletivos assumem a frente dessas pesquisas sobre seu corpo-identidade maior, trazemos à luz da criticidade um componente ainda mais legítimo.

Negar a extinção de uma cultura é por si só um ato revolucionário e performar esses percursos afirmativos pressupõe outras metodologias. Quando pesquisadores artistas assumem essas posições, podemos dizer que são corpos coletivos inteirando-se de si numa retomada gradual e constante que perpassa todos os territórios.

Sobre o território, em princípio, podemos considerar o mais básico dos lugares a se ocupar, pois são nos territórios físicos, a terra ancestral, que residem todas as memórias que virão a se reconectar com os corpos biológicos vivos ainda que em fragmentação. É que, se culturas, saberes, conhecimentos, cosmologias podem ser considerados um tipo de energia, temos aqui um ponto que pode parecer muito interessante, no campo da reflexão (...)

Vamos lançar algumas provocações para juntos desenvolvermos um campo de pensamento que vá além do convite que é lançado, não aleatoriamente, para que o senso comum aceite e internalize a extinção cultural ou o etnocídio. Para onde vão afinal os cabedais de conhecimento das culturas que foram, a priori, extintas? (...)

Imaginemos então uma espécie de biblioteca, um repositório mais que virtual, um lugar memorial (...) que são os cômputos dos saberes ancestrais das culturas ditas extintas. Se as línguas, as práticas, os ritos, mitos e o tudo de uma cultura extinta estão em um lugar à parte, qual seria a chance dessas culturas voltarem a ser manifestadas?

A língua Tupiniquim está registrada de algum modo graças à resistência do povo e aos pesquisadores que documentaram essa parte da cultura que hoje é retomada vertiginosamente. O que se conhece sobre os Tupiniquins, grosso modo, ainda que por poucos, é que essa nação passou por diversas fragmentações no processo histórico colonial, mas resistiu e está viva.

Lê-se que nas últimas décadas teve parte de seu território ancestral devolvido para uma população de pouco mais de mil indivíduos e que desde então intensificam outras retomadas, em especial a língua. A literatura pública diz que o idioma Tupiniquim quase foi extinto, mas que hoje é ensinado nas escolas das aldeias, ainda que como uma segunda língua.

O que tento suscitar é a possibilidade de se considerar viável, que questionemos a sentença taxativa da extinção com um fim definitivo. Quero pensar e fazer pensar que as culturas anteriores à nossa estão disponíveis aos corpos vivos, se os corpos se manifestarem, ao menos um, para começar o processo.

*Trechos do texto “A língua é o corpo, o corpo é a linguagem”, de Jaider Esbell, produzido para o projeto “Língua Viva, Imagens em Movimento em Debate”, em março de 2021. Acesse www.linguaviva.org para ler na íntegra.

SOBRE O AUTOR

Jaider Esbell é artista, escritor e produtor cultural indígena do povo Makuxi. Nasceu em Normandia, Estado de Roraima, e viveu até aos 18 anos onde hoje é a Terra Indígena Raposa – Serra do Sol (TI Raposa – Serra do Sol). Antes de ser artista, habilidade descoberta na infância, Esbell percorreu diversos caminhos que acreditava que o levariam à plena condição de manifestar suas habilidades.

Deixou a casa dos pais e chegou à capital Boa Vista com o ensino médio concluído. Como todo adolescente indígena, fez contatos com os pares em vilas, cidades e aldeias. Formou-se em Geografia em 2007. Em 2016, recebe indicação ao Prêmio PIPA, o maior prêmio da arte contemporânea Brasileira. Estaria assim de fato e de direito falando a língua universal, a linguagem das artes. Sendo a arte o seu próprio objeto de vida.

SOBRE O PROJETO LÍNGUA VIVA

Tornar público o pensamento Tupinikim sobre a sua realidade, por meio da arte indígena e do incentivo à retomada da sua língua materna: essa é a principal contribuição do projeto “Língua Viva – Imagens em Movimento em Debate”, desenvolvido pela doutoranda em Antropologia Social Aline Moschen, em conjunto com a Bule Criativo, linguistas e artistas indígenas do tronco Tupi.

Selecionado pela Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, por meio da Secretaria de Estado da Cultura (Secult/ES), o projeto consiste na construção de um acervo digital composto pelas obras fotográficas de artistas indígenas, disponibilizado no site www.linguaviva.org, e na realização de um podcast no formato de um debate reunindo a pesquisadora e as lideranças indígenas Jocelino Tupinikim, Urutau Guajajara e Tiago Matheus Tupinikim.

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