"Maternidade", livro de Sheila Heti publicado em 2019 pela Companhia das Letras, vem discutir um tema profundamente atual, mas ainda pouco discutido na literatura: as dúvidas que permeiam a decisão da mulher em exercer, ou não, sua função biológica de procriar.
Com um texto que mistura, todo o tempo, ficção e autobiografia, a autora proporciona ao leitor a experiência de se situar no lugar de alguém que escuta opiniões externas a respeito de escolhas e decisões sobre o próprio corpo e sobre a forma de viver a existência feminina.
Desde que Simone de Beauvoir situou a origem do patriarcado nas distinções biológicas que fizeram da mulher o segundo sexo, e que conferiram o poder ao sexo que mata, em detrimento do que engendra, e passando pelas análises de Freud — de que a distinção anatômica entre os sexos não é um dado secundário em como os indivíduos se situam diante da castração — esse livro é o mais orgânico que encontrei. É uma obra de arte.
Machos e fêmeas são dois tipos de indivíduos que, no interior de uma espécie, diferenciam-se em vista da reprodução: só podemos defini-los correlativamente.
Sheila Heti levanta um debate fundamental em torno dos dilemas subjetivos e inconscientes que perpassam os desejos femininos, especialmente quando se está perto de uma escolha entre desempenhar — ou não — as finalidades biológicas que a natureza outorgou às mulheres.
Minha profunda identificação com a autora passa menos pelo conteúdo manifesto da obra e mais pela forma como ela explora o seu próprio universo onírico e pelo modo como ela brinca com a ideia de um oráculo, para o qual ela endereça suas questões mais fundamentais.
Não menos importante na obra é o fato de que ela tem Miles ao seu lado. Um personagem que traz o amor à cena, com toda sua carga de ternura e ódio, de encontro possível, desencontros inevitáveis e de uma insistência no afeto.
A mãe e avó da autora também aparecem como personagens importantes, trazendo a questão geracional e a relação mãe-filha como questões não menos traumáticas na trama da autora do que na maioria das nossas vidas reais. Como na vida, elas também têm seus momentos de reconciliação e redenção.
Sheila Heti explora a fase folicular, a fase ovulatória e a fase lútea, nesse ciclo que não cansa de se repetir, todos os meses, durante a idade reprodutiva da fêmea humana.
As fantasias que a autora constrói, em cada um desses momentos do ciclo, são tomadas como metáforas para analisar também a pressão social de ser aquela que carrega, em seu corpo, a função de gerar uma nova vida.
Mas não se enganem, porque Sheila Heti não está se perguntando sobre ter ou não filhos. Ela está se perguntando sobre o sentido da vida, sobre o seu próprio sentido.
Sheila vai, de maneira lúdica, sarcástica e cômica, expor como é viver nessa batalha entre corpo e mente, entre esse Deus-Ovulando do novo testamento e esse Deus-TPM do antigo.
Ela vai, de maneira profundamente implicada, reivindicar a sua liberdade biológica e nos ajudar a entender (um pouco) esse que, talvez, seja um dos dilemas mais fundamentais e inalienáveis do que é ser uma mulher.
Publicado em 2019, é uma leitura que nos ajuda a compreender a mulher do século XXI diante da sua natureza e, por vezes, em uma luta corporal e psíquica com ela.
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