O professor, músico e compositor Léo de Paula acaba de lançar seu primeiro disco solo, "Grão - Território Percussivo" (Independente). Léo é um músico experiente e na linha dos versáteis craques instrumentistas brasileiros (Leo Gandelman, André Mehmari, Edu Ribeiro) transita bem tanto na música de concerto quando nas rodas de samba. Já pisou, com Villa Lobos, nos palcos do Carnegie Hall, na terra do Tio Sam, nos palcos do sérvio Kolarac Concert Hall, do inglês Purcell Room e em mais um bocado de salas e teatros de grande prestígio pelo mundo afora. Contudo, para nossa sorte, é ainda uma figura fácil nas boas e raras rodas de choro dos redutos nem sempre nobilíssimos da Ilha de Vitória.
"Grão - Território Percussivo" é um álbum de 12 faixas instrumentais (incluindo uma vocal-instrumental) e, como o próprio encarte sugere, “consiste em uma combinação de obras de concerto contemporâneas e peças escritas para trilha sonora de espetáculos de dança afro-brasileira cênica”.
Aqueles que não se limitarem a uma cega escuta no aplicativo de streaming terão acesso – via site ou via mídia física - aos comentários que o generoso compositor fez para cada faixa. E fica claro, desde a primeira passada de olhos nos breves textos no encarte, que para mergulhar um pouco no assunto e tatear camadas menos imediatas da audição é necessário abordar certas dimensões históricas, antropológicas e afro-religiosas que subsistem e dialogam com essa música.
Evidentemente, como obra, o álbum é autônomo e dispensa abordagens ensaísticas, explicativas, especulativas, et cetera. Ao mesmo tempo, como toda obra conceitual, o comentário ensaístico pode abrir caminhos para uma audição ainda mais profícua. Na dúvida, mal não deve fazer.
Dito isso, é preciso um adendo: em um país tão vocacionado para o apagamento de certas referências históricas, por mais que sejam absolutamente constitutivas, se a matéria é cultura afro-brasileira, é sempre importante iniciar qualquer texto com um conjunto de informações fundantes para o exercício ensaístico. É esse o caso. Em português do dia a dia - ou como diria o velho Oswald de Andrade, português “do bom branco e do bom preto da nação brasileira”: não dá para falar de música tributária às culturas da diáspora africana, como é o caso da música do Léo de Paula, sem evocar algumas informações.
AS REFERÊNCIAS
Calcula-se que, entre os séculos XVI e XIX, foram escravizados e embarcados no continente africano 10.642.683 pessoas. Desembarcaram deste lado do Atlântico 9.186.610 pessoas. Ou seja 1.456.073 morreram na viagem. Em quase três séculos de escravidão, estamos falando de mais de dez pessoas mortas por dias ininterruptamente. Dessas 9.186.610 que conseguiram chegar vivas do outro lado do oceano, 5.099.816 desembarcaram no Brasil.
Os africanos escravizados que aportaram aqui foram originários das mais distintas etnias - bacongos, ambundos, benguelas, ovambos, iorubas, jejes, minas, hauças... Só para citar algumas. E essa diversidade implicou naturalmente uma pluralidade linguística, religiosa e, de modo geral, cultural imensa. Não apenas as células rítmicas das faixas, mas alguns títulos e comentários do "Grão" aludem a ritos e narrativa míticas com essas referências.
Sempre que se fala no assunto, é preciso sublinhar que a escravidão de africanos e descendentes de africanos garantiu a acumulação primitiva que fundou o capitalismo. Quer dizer, o capitalismo, ao contrário do que muitas vezes aprendemos na escola, não é fruto da liberdade, ele é um resultado da escravidão - uma instituição que teve como princípio o apagamento dos nomes, das histórias, dos saberes e das origens para transformar o corpo negro em uma mercadoria.
É importante sublinhar isso hoje, dia da Consciência Negra, mas é sobretudo importante que essas questões constituam cotidianamente nossas relações com o mundo.
O racismo estrutural é o maior legado da instituição escravagista. Nessa sociedade racista construída sobre o signo da apropriação do corpo negro, todos os elementos constitutivos da experiência da negritude sofreram (e ainda sofrem) um processo de despotencialização e aniquilamento. Com a música não foi diferente. E os modos de violência constitutivos da estruturação dessa nação chamada Brasil continuam se reconfigurando e crescendo.
Comemora-se muito, no Brasil, a cultura como um território de dissipação das diferenças e da violência colonial. Como se a cultura fosse finalmente o lugar em que se realiza a democracia racial. Mas isso que parece um lugar pacífico e conciliatório obnubila uma série de questões que merecem ser debatidas.
Se por um lado, por exemplo, a indústria fonográfica teve desde sua origem a presença de afro-brasileiros gravando suas músicas (Eduardo das Neves, Baiano, Caninha, Sinhô, Amor, Heitor dos Prazeres, Patrício Teixeira, Pixinguinha, Donga e João da Baiana, para citar alguns), por outro lado, as estratégias de negociação cultural que esses artistas, desde sempre, foram submetidos não foram poucas. Destacaria uma: a de reiterar o lugar folclórico, caricato, exótico, tradicional e não raro, risível, da música negra.
ESTÉTICA E ÉTICA
E, se estou sublinhando essas questões que podem para muitos passar ao largo da política, é porque talvez seja necessário compreender que toda estética tem uma ética (e uma política) no seu bojo e, nessa seara, o que mais chama atenção nessa semente lançada por Léo de Paula é sua capacidade de devolver certa dimensão roubada da música africana e afro-brasileira. A dimensão inventiva, que em última instância é o grão avivador e potencializante da experiência negra na diáspora.
Diria que, de modo geral, quando se fala em culturas afro-brasileiras evoca-se a ideia de folclórico - ideia essa que ganhou modulações e se atualizou em termos de “tradição”. E isso, na prática, implica inclusive uma concepção e uma expectativa de atuação característica (e até caricata) dos instrumentos. Nesse sentido, entende-se o agogô, os tambores, o berimbau, os chocalhos, et cetera, sempre em um registro da dimensão da “música tradicional”.
Modelos historiográficos vigentes sobre a dita “música de matriz africana” nos acostumaram a vê-la com um compromisso incontornável com a manutenção da continuidade histórica. Quer dizer, a historiografia consolidou uma ideia de temporalidade referencial e instituiu a partir daí uma ordenação cronológica e causal que restringiu a possibilidade de se pensar a música africana e afro-brasileiras sob o signo invenção. Para o compositor, o presente se torna refém natural de uma “tradição” e sob esse ponto de vista (que é hegemônico) a suposta “tradição” se torna régua para hierarquias.
Historicamente, essa “tradição de matriz afro” está impregnada de imperativos despotencializantes/despolitizantes tributários à mesma dinâmica de colonização que já conhecemos, e - chamo a atenção - caminhando no extremo oposto, temos a dimensão inventiva, disruptiva, criativa, de uma arte conectada com as demandas do seu tempo. Mas essa arte foi, na nossa história oficial, situada nos espaços de branquitude. Basta pensar que o ponto zero da arte Moderna Brasileira é Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Mario de Andrade... todos brancos e abastados.
Mas poderia ser Alcebíades Barcellos (o Bide), Armando Marçal, Ismael Silva, Nilton Bastos, Baiaco, Brancura, Mano Edgar e Mano Rubem, isto é, o samba feito pela “Turma do Estácio” - todos tributários às culturas negras da diáspora africana. Por mais que o Morro do Estácio tenha sido fundamentalmente o espaço da rebelião, o território dos novos agenciamentos técnicos, da ebulição do novo e do inusitado, a cultura negra foi depositada na caixinha do folclore e da tradição conservadora.
Existe, no Estácio, claro, uma consciência do lundu, do maxixe, do samba de roda, das tias baianas, e de tudo que veio antes (a tal “tradição’), mas aquele espaço é sobretudo um espaço de recusa dos ritmos, dos timbres, dos instrumentos. É para isso que chamo atenção. É um espaço sobretudo de recusa dessa tradição com vistas à invenção. E é justamente nesse território da invenção que se situa o "Grão".
E, nesse sentido, a partir do momento que Léo de Paula experimenta outras células rítmicas associadas a narrativas míticas (iorubás, jejes), recombina instrumentos de diferentes origens criando presets inusitados, aposta na criação de imagens e sobreposições de camadas e nas funções harmônicas e melódicas dos instrumentos de percussão, reitero, há uma ética e uma política no Território Percussivo que consiste da devolução da dimensão disruptiva e potente dos mitos, dos ritos e, de modo geral, da experiência negra na diáspora.
Por tudo isso, é muito oportuno mencionar esse álbum em um dia importante como hoje. Para finalizar, diria que muito mais adequado do que estar, por exemplo, na prateleira com os importantes álbuns de Marcus Pereira, "Grão" deve ombrear os álbuns de Naná Vasconcelos, do Uakti e quiçá do Steve Reich. Evoé, Léo de Paula. Sem mais delongas, vamos ao disco, vamos à música.
LANÇAMENTO
CD “Grão: Território Percussivo”, de Léo de Paula
Lançamento presencial: 23 de novembro, às 16h, no Museu Capixaba do Negro Verônica da Pas (Mucane) – Avenida República, 121, Centro, Vitória, com recital de Léo de Paula e a participação do Grupo de Percussão do Projeto Vale Música Serra e do Projeto Badu de Dança Afro-Brasileira, desenvolvido pela Estação Conhecimento de Serra; e das convidadas Ekaterina Bessmertnova (cantora) e Rapha Mel (coreógrafa). Evento aberto ao público.
Apoio: Projeto realizado com recursos do Funcultura, por meio da Secretaria de Estado da Cultura (Secult-ES).
Onde adquirir o CD: no site da FiNA Produtora – www.finaprodutora.com.br
Preço: R$ 20
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Onde ouvir: o álbum está disponível nas plataformas digitais Spotify, Deezer, Apple Music, iTunes Store e Tidal.
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