Jânio Quadros, à esquerda, realizou uma visita presidencial ao Espírito Santo em 1961, antes da renúncia ao cargo
 Jânio Quadros, à esquerda, realizou uma visita presidencial ao Espírito Santo em 1961, antes da renúncia ao cargo. Crédito: Arquivo/Vale

Nos tempos das ondas curtas e das notícias de anteontem

Ler aquelas notícias no jornal era como olhar para o céu e ver o passado. Quando algum fato importante ou destacado acontecia no Brasil ou no mundo o recurso estava no rádio

Tempo de leitura: 5min
Publicado em 25/05/2024 às 09h00
  • Chequer Hanna Bou-Habib

    É engenheiro

Ando sentindo saudade do jornal impresso, daquele farfalhar de páginas recebidas perfeitamente alinhadas e deixadas como bagaços após a leitura, ainda que nenhuma notícia realmente empolgante tivesse sido encontrada naquelas folhas barulhentas, indobráveis, que se enroscavam nas mãos, nos braços e em qualquer objeto quebrável na redondeza mais próxima. E isso deixa saudade.

Uma pena que o jornal impresso quase não mais exista, triturado para sempre por fatores econômicos e financeiros que abatem sua história plena de fatos notáveis, de jornalistas heroicos, de editores ousados e de focas ambiciosos. Esses pioneiros ainda podem ser vistos por aí, porém estão submersos no pântano da nova economia, do novo marketing, de novas exigências financeiras que a cada dia os ameaçam de esquecimento e morte. Para não morrer, resignam-se a matar o elemento mais frágil, aquele feito de papel.

Ainda na flor da adolescência, há mais de sessenta anos, eu lia a Gazeta todos os dias. Morava em Iúna. O jornal nos chegava pelo ônibus das 18 horas, implicando-nos, a mim e ao meu tio, a deixar a leitura para a manhã seguinte. Ele era sempre o primeiro a ler, claro, para depois abandonar as folhas amarfanhadas que eu recolhia cuidadosamente, alisava sobre o balcão da venda, repunha as páginas na ordem correta e passava o resto do dia a ler as notícias e, especialmente as crônicas diárias ou semanais (ainda me lembro de certo Nabor Vidigal com sua “crônica policial moderna”).

Não podia ler de uma sentada porque eu trabalhava no balcão e a leitura ficava reservada para as folgas, quando não havia fregueses a atender nem outras tarefas, tais como manter balcões e prateleiras limpas das nuvens de poeira atiradas por jipes e caminhões que passavam durante todo o dia, buscar a fresca água mineral de uma acanhada mina no fundo do quintal e transferi-la para a talha cerâmica – não se pensava em geladeira naqueles tempos antigos – ou manter as prateleiras arrumadas, exibindo nossos produtos a uma freguesia humilde e desambiciosa.

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"De todo modo, ao finalmente abrir o jornal, parecia que eu entrava na História ao ler, a cada manhã, a informação, no cabeçalho, de que A Gazeta estava havia “33 anos a serviço coletividade capixaba” e que tinha sido fundada por Thiers Velloso."

A leitura era invariavelmente excitante, para muito além e independente da essência das notícias. Era o contato com outros mundos, invisíveis e apenas imaginados; a cada manhã esses mundos aterrissavam em minhas mãos e em meus olhos, me arrebatando a imaginação.

As resenhas dos filmes que estavam em cartaz nos muitos cinemas de Vitória, as colunas sociais mostrando um tipo de gente inalcançável, poderosos, famosos, essencialmente ricos; os políticos em ação, políticos que só conhecíamos dos palanques e dos santinhos a cada quatro anos. E tinha o futebol, com notícias que até vinham pelo rádio, com a diferença de que o rádio era indomável, dono da sua velocidade e de suas prioridades.

O jornal, não: eu podia controlar a leitura, repetir qualquer parágrafo, estudar as fotos ou rever a descrição das partidas e, principalmente dos gols. O jornal era, no meu caso, uma porta para o mundo, uma porta que eu abria devagar e fechava conforme a minha vontade. Nem sempre: às vezes era interrompido por algum freguês inoportuno. Era meu caleidoscópio de cada dia. Em comparação, são os jornais digitais que parecem antiquados.

Mas o jornal nos mostrava o anteontem. Ler aquelas notícias era como olhar para o céu e ver o passado. Quando algum fato importante ou destacado acontecia no Brasil ou no mundo o recurso estava no rádio. Aqueles de ondas curtas. Eles permaneciam ligados nas vendas e nas salas de visitas durante o dia e, principalmente, à noite. Andando pelas ruas estávamos constantemente acompanhados das vozes de locutores, de músicas do momento, de programas de auditório, de anúncios de remédios ou de perfumes, além de orações e conselhos sobre como viver melhor comprando essa ou aquela roupa vinda de Paris e já a venda no Rio e em São Paulo.

(Não existiam as compras on-line com pagamento por cartão digital, mas havia o reembolso postal: um produto era selecionado num catálogo - como os da casa Hermes, do Rio, que nos chegavam a cada mês -, encomendado por meio de formulários próprios, enviados pelo correio. Depois de uns trinta dias o correio comunicava a chegada e o destinatário comparecia à agência, pagava e retirava sua encomenda.)

Muitos não tinham a paciência de ficar tentando encontrar as estações no rádio de ondas curtas - e não era todo o mundo que tinha um rádio; estes recebiam as notícias trazidas pelos bem informados de sempre, esses antepassados dos atuais internautas, que exibiam pelas ruas e bares seus radinhos de pilha, pequenos, de menos de vinte centímetros, colados ao ouvido.

Andavam pelas ruas acima e abaixo multiplicando o que ouviam, o que os fazia muito populares. À noite as rádios transmitiam em ondas médias, nitidamente. As várias edições do Repórter Esso na Radio Nacional, do Globo no Ar ou do Cacique Informa na rádio Tupy provocavam pequenos ajuntamentos nos bares e em outros lugares públicos. Esses noticiários duravam cinco minutos e resumiam todas as notícias.

Numa tarde de agosto vinha caminhando pela estrada, com passo preguiçoso, nosso vizinho Genésio. Era um dos populares. A cabeça inclinada, colada ao ombro, ouvia seu radinho. Ele andava e parava, mudava a posição do rádio, andava e tornava a parar, sempre procurando sintonizar alguma estação. Ao lado dele outro vizinho, o Brasilo, empurrava uma bicicleta velha.

Na porta da venda, meu tio ergueu o braço e perguntou: “O que temos de novo hoje, Genésio? Onde vai ter desfile do Dia do Soldado”? O Genésio parou, afastou o radinho, encheu o rosto de sombras e murmurou em voz cava: “Quer saber? O Jânio acabou de renunciar. Estamos perdidos”. E prosseguiu pela estrada, ainda procurando melhor posição para ouvir o que o rádio lhe dizia para informar sua audiência.

O Brasilo, em ar de espanto, estatelou, deixou desabar o bigode, se apoiou na bicicleta e também murmurou: “Isso vai ser muito sério, por que será que o Jânio caiu fora?” Numa palidez de descrença, meu tio decretou: “Não adianta esperar muito das ondas curtas do Genésio; melhor ouvir o Repórter Esso das oito e vinte e cinco. E esperar pela Gazeta. Vamos saber tudo depois de amanhã”.

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