Um grande escritor brasileiro despontou recentemente com uma obra publicada inicialmente em Portugal e que impressionou o leitor por sua capacidade narrativa incomum, pela leveza, apesar da dureza do tema, e pelo carinho com que trata as personagens em sua luta diária pela vida e em sua busca incessante de paz. Trata-se do romance “Torto Arado”, publicado no Brasil pela Editora Todavia.
O autor, Itamar Vieira Junior, nasceu e cresceu na periferia de Salvador e se revelou ao mundo depois de ter recebido com seu romance os principais prêmios literários em Portugal e no Brasil. Itamar é geógrafo, funcionário do Incra, e trabalhou com educação de quilombolas, alfabetização de trabalhadores rurais e na regularização de terras de comunidades negras. A convivência direta com esses grupos humanos e com as histórias desses “herdeiros da diáspora” deu a ele o mote para a concepção deste romance ambientado na Chapada Diamantina, na Fazenda Água Negra.
Nele, duas irmãs, ligadas profundamente por um acidente na infância com uma faca, contam a história de sua família, de seu entorno, de sua labuta diária em situação de semiescravidão, de suas crenças e de suas práticas religiosas. É inevitável que questões como o racismo, as máculas hediondas da escravidão, a ancestralidade, o direito à memória e a forte relação do ser humano com a terra venham à tona nessas narrativas de “gente que atravessou tudo suportando a crueldade que lhe foi imposta”, como afirma uma das narradoras.
O romance, aliás, se compõe de três capítulos narrados por diferentes personagens: as irmãs Bibiana e Belonísia e uma “encantada”, um espírito assim chamado nas celebrações religiosas do “jarê”, que incorpora um curador, uma pessoa da comunidade com esse dom, usando-a como “cavalo”.
Essas três perspectivas tornam o romance mais rico nas abordagens e se completam formando um todo harmonioso, pleno e repleto de força, determinação e vontade de viver que move as personagens, pois ali viver significa resistir, mesmo com o “arado torto”. Uma metáfora, aliás, que autor tomou emprestado do poema "Marília de Dirceu", de Tomás Antônio Gonzaga:
- A devorante mão da negra Morte
Acaba de roubar o bem, que temos;
Até na triste campa não podemos}
Zombar do braço da inconstante sorte.
Qual fica no sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos
Ferro do torto arado.
Sobre sua identidade com o passado e suas origens afrodescendentes afirmou o autor em uma entrevista: “Fiz dois testes de DNA. Foi a forma de reconstruir o passado que me foi negado. Eu tenho trisavós maternos que vieram de Portugal para a Bahia, em 1914. Eram pobres, analfabetos e já tinham filhos. Mesmo com toda a pobreza e toda vulnerabilidade, a gente sabe que vieram da região do Minho, em Portugal, e eles nunca puderam voltar. Em relação aos meus antepassados negros, a minha história foi negada. Provavelmente, foram escravizados, que foi a maneira de chegar na Bahia por quatro séculos de escravidão. A literatura para mim também é um caminho para a reconstrução de histórias íntimas, ancestrais, mas a gente já dispõe de tecnologias para nos ajudar a encontrar um elo perdido com nossa ancestralidade.”
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Um texto cheio de dor, de sofrimento, de injustiças e de vida. Pois para o autor “escrever é estar vivo!”.
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