Jeane Bilich completaria 74 anos neste dia 12 de outubro de 2022. A escritora, que faleceu no dia 27 de março passado, deixou o seu nome gravado no jornalismo capixaba, pelo qual ela é conhecida como grande dama. É sabido que a hierarquia de gênero faz parte da história de muitas profissões, inclusive do jornalismo. A determinação e a competência de Jeanne Bilich contribuíram para a feminilização dessa profissão majoritariamente exercida por homens, na sua época.
As conquistas da escritora também se estenderam para o campo da literatura e, em 2013, ela foi eleita para a cadeira nº 7 da Academia Espírito-santense de Letras. Com uma rica obra narrativa, Jeanne possui dois livros de crônicas, "Zeitgeist – O Espírito do Tempo" (2009) e "Viajantes da nave Tempo" (2013). Na crônica intitulada "Transgressão às regras da boa crônica”, de Zeitgeist, ficamos sabendo sobre a existência dos “Cadernos de Anotar Vida”, ou seja, uma coletânea que começou a ser escrita em 1972 e que, na época, já contava com “26 volumosos tomos”, “hemorragias gráficas" que, segundo declaração da autora, a impulsionaram para a pesquisa e, mais do que instrumentos para “mapear a alma” “serviam para “diluir raiva, frustração, mágoas ou ressentimentos”.
Pouco sei sobre esses “Cadernos de Anotar Vida” além do que está narrado na referida crônica, mas, na condição de pesquisadora e admiradora da obra de Jeanne, confesso que gostaria de saber sobre o seu destino e se serão publicados. Certamente, esse material enriquecerá o conhecimento sobre a sua produção.
A obra "Zeitgeist: o Espírito do tempo" reúne 56 crônicas publicadas no Caderno Dois do jornal A Gazeta, entre os anos de 2007 e 2009. No prefácio, o escritor e editor Sidemberg Rodrigues adverte ao leitor que “é difícil passar incólume pelas traiçoeiras letras de Jeanne Bilich”, pois elas são “portais” que combatem “os males da limitadora condição humana”.
Concordo que cada crônica de Zeitgeist é um “portal”, por onde o leitor pode, de acordo com o seu desejo, penetrar mais profundamente. Observo que há, ainda, na obra, uma profusão de elementos que remetem para o sutil, espiritual e, por que não, para o esotérico?
Não é à toa que a escritora, entre os pensadores com quem dialoga, insere Carl Gustav Jung, autor que fez uma cartografia singular da psique humana. Entre esses variados portais, um muito me interessa, e ele tem como seu guardião um gato persa de fina estirpe, Nietzsche, “nigeríssimo”, “com olhos de farol, sábio e reflexivo amigo”. Penetrar nesse portal é encontrar Jeanne trabalhando, no cadinho das emoções, seus sentimentos mais íntimos, sua visão de mundo.
Quando penetramos no campo dos símbolos e da magia, assim como guiados pela deusa Hécate, nos surpreendemos com a experimentação de um outro tempo, um tempo cíclico, no qual “já fomos essas crianças de hoje, Depois? Rebeldes adolescentes, desafiantes jovens, adultos responsáveis; e, na maturidade, arcamos com pesados fardos. Imersos no incessante 'contínuum' das elipticas”.
A crônica “O círculo do ouroboros” revela que a escritora havia completado 60 anos, logo após prestar o seu "particularismo vestibular para a velhice". Ela dialoga livremente com o leitor alertando-o que “é de uma franqueza cortante. [...] Bela Virtude, grave defeito”, e que recusou “botox”, “lipo”, “silicone”, etc., preferindo observar “a geografia que se desenha no seu rosto e corpo”.
Essa escolha de vida, na contramão das cobranças sociais a que comumente estão sujeitas as mulheres, a levou a um momento sublime, quando percebeu que os dedos da “estreante velha” se entrelaçam amorosamente aos da “menina Jeanne”, “isenta de culpas, mágoas ou ressentimentos" e que “à alma felina,- independente e libertária - amalgamou-se à leveza dos beija-flores que fazem sorrir as orquídeas na janela”.
Acredito que muito da magia da obra de Jeanne Bilich está na conjugação entre consciência histórica, capacidade de maravilhamento e contentamento nas coisas simples, algo possível apenas às almas sensíveis. A escritora descansou em paz, entre as pessoas que lhe eram queridas e confessa, na obra, que durante a vida amealhou um tesouro: “Amigos diletos, paredes revestidas de livros, o gatinho Nietzsche e você, fiel leitor dominical".
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