É de Millôr Fernandes a célebre afirmação: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”. Ao leitor menos familiarizado com as questões do lembrar e do esquecer é preciso primeiro fazer uma breve introdução a respeito da memória como ferramenta política. Antes de tudo, a memória à qual me refiro não é aquela que buscamos rapidamente e logo sabemos, a que usamos em nosso cotidiano, que nos indica nomes, lugares, cores, sabores etc.
Em meu novo livro “Da chibata ao camburão – memória, raça e seletividade penal no Brasil” (Ed. Milfontes) abordo a memória que se aproxima da história, a memória que serve de instrumento para a construção da história no presente. Entre o lembrar e o esquecer de fatos pretéritos há o desejo de lembrar e, por conseguinte, de apagar. Estamos fartos de exemplos de esquecimentos e de apagamentos, forjados em contexto de disputa política. Hoje, é bom deixar evidente, vivemos em uma robusta contenda, em que se luta para reescrever a história do país no sentido de exaltação de fatos passados extremamente deletérios.
A ascensão ao poder de um presidente que exalta torturadores da ditadura militar evidencia o problema de memória que nos assola. Em torno da disputa entre a ditadura, o golpe que a instaurou e as torturas que serviram de substrato aos longos 20 anos de duração, hoje debate-se se foi ditadura, se houve golpe, ou se, na realidade, segundo discursos autoritários e falseadores da verdade, o que ocorreu foi uma reação à fantasiosa ameaça comunista.
Mas o leitor já deve estar se perguntando o que a ditadura tem a ver com o racismo brasileiro, com a escravidão. Adianto: muito. A escravidão e seus meios de controle de corpos humanos forneceram a tecnologia de medo e violência usada nos porões da ditadura. O pau de arara, a cadeira do dragão e outros meios atrozes de violência foram inspirados nos quase 400 anos de escravidão. Ainda, uma sociedade que tolerou largamente o subjugo de imensa parcela da população, como se não fossem humanos, tratados, vendidos e descartados como reses, concede um ambiente propício ao abuso de violência e de autoridade.
Na atual conjuntura, a palavra usada para tentar reduzir os que lutam por igualdade racial é nos chamar de identitários, que são as pessoas que lutam para que as múltiplas formas de existir tenham direitos iguais, conforme determina a Constituição Federal, aquela construída justamente para enfrentar e evitar a repetição da ditadura militar. Não em vão, a Constituição sofre tantos e reiterados ataques, afinal, naquele texto há muito da esperança de um país que, em 1988, completava apenas 100 anos de abolição da escravidão.
É nesse caminho em que minha pesquisa se desenvolve, na tentativa de contar “a história que a história não conta”, “o avesso do mesmo lugar”, versos que pego emprestados do emblemático samba-enredo da Mangueira, vencedor do carnaval carioca no ano de 2019, enquanto eu produzia minha dissertação de mestrado. Se há o relato então majoritário de que há no Brasil uma suposta “democracia racial”, disputamos para apresentar a versão real da história, que aponta para um longo, poderoso e cruel projeto de morte do povo negro no Brasil.
As palavras aqui usadas podem causar estranhamento a alguns olhos, dedos e ouvidos, no entanto é esse o desiderato primário de um pesquisador comprometido com a irrestrita defesa dos direitos humanos: incomodar os acomodados para que se movam no caminho da busca pela redução das desigualdades.
Com efeito, a escravidão segue sendo a mais bem acabada instituição brasileira, a mais duradoura e forte, com efeitos perenes. Por evidente, seus efeitos são danosos e indutores de dor e sofrimento, o que, entretanto, não deixa de representar sua força. O racismo, portanto, sobretudo o estrutural, é a grande chaga herdada da escravidão de negros sequestrados na África e trazidos para as Américas, via Oceano Atlântico.
É por meio do racismo estrutural que se aceitam sucessivas chacinas de corpos pretos em comunidades pobres em todo o país, uma vez que séculos e séculos de escravidão, sucedidos por tentativas de embranquecimento, de eugenia e outras formas brutais de violência social, cultural, racial e religiosa autorizam que forças do Estado sigam derrubando corpos negros, como se coisas fossem.
LIVRO
“Da chibata ao camburão – memória, raça e seletividade penal no Brasil”, de Raoni Vieira Gomes. Editora Milfontes. 164 páginas. Preço de capa: R$ 59
LANÇAMENTO E NOITE DE AUTÓGRAFOS
Participe de um bate-papo com o autor do livro no dia 31/05 (terça-feira), às 19h, na Editora Milfontes. (Rua Carijós, n. 720 - Ed. Delta Center - Loja 1 - Jardim da Penha, Vitória)
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