Dona Flor possui dois maridos: Vadinho, ludopata à toa, incumbido do amor de impurezas, errado e torto, devasso e ardente, mesmo reduzido a um espectro após a morte prematura; e Teodoro, estimado farmacêutico, responsável pelo amor da casa própria, da fidelidade conjugal, do respeito, da ordem e da segurança, vivo em carne e osso.
Teodoro é marido da senhora dona Flor, cuida da sua virtude, da sua honra e do seu respeito humano; Vadinho é marido da pobre dona Flor, aquele que vai acordar sua ânsia e morder seu desejo, escondidos no fundo do seu recato. Foi acolhendo a convivência de ambos, legitimados por padre e juiz, que dona Flor encontrou sua completude e pôde gozar da rotina a que seus impulsos de mulher insistiam em atraí-la.
São bastante distintas as realidades cotidianas dos dois maridos. O vício de Vadinho é animado pelas vielas soteropolitanas, em relação íntima com o baixo meretrício e o desamparo que assola a capital baiana. Há os cassinos frequentados pelas elites da cidade baixa, é verdade, e Vadinho é presença assídua; mas suas noites e as de seus camaradas apenas começam por lá, porquanto o bolso pede mudança de ares. Longe desses ambientes e confortado pelo fagote, pela cerveja com os amigos, pelo trabalho árduo e pela ternura de sua esposa, Teodoro mal sabe o que é jogo.
Se Teodoro, por alguma razão ou mudança de circunstância — uma má companhia, uma perda familiar, desastre nos negócios, pressões sociais... nunca se sabe — cedesse ao vício de Vadinho, não mais haveria a completude de dona Flor. Teria de encontrar um terceiro marido, ou, como é mais provável ao se analisar o caso típico das mulheres das classes média e baixa brasileiras, chafurdaria numa existência de miséria ao lado daqueles que outrora eram conforto.
Pois bem. O romance de Jorge Amado é o modo como tento chamar a sua atenção para a tragédia que se desenhou em torno do mercado de apostas on-line.
Por mais de meio século os jogos de azar legalizados no Brasil eram restritos a um punhado de apostas semanais nas loterias públicas. Getúlio Vargas, ele próprio um entusiasta das mesas de jogos, expediu o Decreto-lei nº 3.688/1941 para classificar como contravenção penal o ato de “estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele”; mas a medida, em verdade, contava com a ressalva do Decreto-lei nº 4.866/1942, que excluía da proibição os estabelecimentos especialmente licenciados para a prática.
Ou seja: Vargas retirou o jogo da rua e incentivou a abertura de cassinos, em geral ligados a hotéis de luxo e a salas de espetáculos, para fomentar o turismo e movimentar a economia. Fazia sentido — o velhinho era viciado em acertar.
Anos depois, porém, alegadamente sob pressão de sua mui beata esposa, Eurico Dutra argumentou que a “repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal”; que “a legislação penal de todos os povos cultos contém preceitos tendentes a esse fim”; que a “tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração e jogos de azar”; e que das permissões à jogatina “decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes” para, também por meio de um decreto-lei, cassar as licenças dos cassinos e banir suas atividades.
Tampouco contesto seus motivos; apesar dos empregos gerados, não eram raros os relatos de famílias destruídas pela ludopatia — condição médica caracterizada pelo desejo incontrolável de continuar jogando —, aqui e no estrangeiro.
A marginalização do jogo o deixou restrito ao bicho, a máquinas caça-níqueis e a exóticos cassinos clandestinos. Toda proibição tem seus ônus, como a criação de causa ao crime organizado; mas é inconcusso: essa dificuldade de acesso livrou milhões de brasileiros do contato com a jogatina. Apelando à quase-sempre burra generalização de um exemplo particular, desafio o leitor a enumerar dez pessoas do seu convívio que apostavam regularmente antes de 2018.
Agora, com a Lei nº 13.756/2018 e a Lei nº 14.790/2023, aplicáveis às chamadas apostas de quota fixa — aquelas em que o valor a ser ganho é predefinido no momento do palpite — vinculadas a “eventos reais de temática esportiva” e a “eventos virtuais de jogos on-line”, os brasileiros têm na palma da mão uma infinidade de cassinos acessíveis em qualquer lugar, a qualquer minuto. Não é preciso ir às vielas de Vadinho.
Para piorar, são bombardeados por um arsenal publicitário multibilionário que recruta de celebridades a clubes de futebol para vender ilusões de ganho fácil. Segundo o Itaú, os jogadores perderam R$ 23,9 bilhões para as casas de apostas — muitas delas sem sede no país, à margem da arrecadação. Pelos cálculos da consultoria PwC, as apostas devoraram 1,38% do orçamento das classes D e E; o Santander estimou em 2,7%. Ambas as análises, ainda que sem cifras precisas, dão por certo o prejuízo a outros setores da economia.
Sabe o sobredito desafio das dez pessoas? Hoje, é mais difícil enumerar dez que não apostam. Eu, como homem jovem — e é esse grupo o alvo central das bets esportivas —, afirmo: mais da metade do meu círculo de amigos aposta todo fim de semana, em variados esportes — tigres e roletas não fazem parte do menu, felizmente. E nenhum deles havia tido contato prévio com bicho ou máquina caça-níquel.
Ou seja: Teodoro, ao simplesmente comprar um celular, cairá na mesma tentação de Vadinho — rezemos para que tenha controle sobre ela.
Qual o propósito disso? Ao relaxar a proibição de jogos de azar, o poder público abraçou o maior contrassenso possível: banalização do acesso, ausência de estrutura física, permissão irrestrita de publicidade e taxação amistosa. Os resultados: número ínfimo de empregos relacionados ao mercado, uma horda de viciados, perdas sensíveis no comércio, gordas remessas de lucro para o exterior, dificuldade de fiscalização e uns poucos trocados no caixa do governo federal.
Cadê o ISS para os municípios? E o ICMS para as combalidas finanças dos estados? E as contribuições previdenciárias para evitar que os idosos de 2050 morram sem se aposentar? Arremate pernicioso: enquanto a tributação da gasolina chega a 60% e a da energia elétrica a 41%, a das casas de apostas made in paraísos fiscais ficou em minguados 12%.
O SUS — sempre ele quando o caldo entorna — não está preparado para aguentar essa pressão. As famílias não estão preparadas; seu orçamento escoa pelo ralo para empapuçar um risonho felino asiático de óculos-escuros. Há muito a ideia de uso do pujante mercado interno nacional como força-motriz do desenvolvimento de setores industriais encontra resistência em setores liberais; “os consumidores não merecem pagar mais por produtos piores!”, reza a máxima reducionista. O que dizer, então, da destinação de parte relevante desses recursos domésticos para plataformas on-line estrangeiras, a troco de nada?
O cenário é tão tosco que faz parecerem vantajosas, icto oculi, várias outras propostas de liberalização. Veja a maconha, por exemplo: num exercício de imaginação, seriam abertas centenas ou milhares de lojas físicas especializadas na comercialização do produto, haveria demanda por técnicos agrícolas e engenheiros agrônomos para cultivo da planta em escala industrial, o crime organizado perderia uma clientela valiosa — aquela com maior poder aquisitivo... em suma, criar-se-ia um mercado minimamente complexo em torno da medida liberalizante, com cadeia produtiva e de consumo. Dito isso, jogos de azar on-line parecem mais nocivos à sociedade e à economia real do que maconha. Ah, vale frisar: não gosto de ambos.
Enfim, embora convictamente católico, é raro que eu, por tão ciente de minhas falhas morais, aponte o dedo a alguém em questões comportamentais. Mas peço licença para fazê-lo a alguns jogadores de futebol evangélicos que, a despeito dos arrotos proselitistas em redes sociais — sobretudo em momentos-chave da política nacional — e das já polpudas contas bancárias, não hesitaram em emprestar sua imagem e seu carisma para o assédio das bets, atiçando os milhões de fãs adolescentes a colocar nessas plataformas, sob pretexto de excitação, o dinheiro dos pais ou aquele conseguido a duras penas num emprego de aprendiz. Há maneiras mais dignas de pagar as contas.
Basta da escusa pusilânime de “irreversibilidade” e de “não haver o que fazer”, tal como tanto se diz em temas envolvendo redes sociais — essa suposta e nauseante impotência; é preciso coragem política e clareza de princípios. O Estado brasileiro deve resguardar suas crianças e seus jovens, pois liberdade sem assistência e sem desenvolvimento é abandono.
E deve, claro, resguardar a dona Flor, que sofrerá os horrores domésticos desse descontrole. Se não houver banimento, que ao menos seja terminantemente proibida qualquer publicidade e seja elevada a tributação a níveis praticamente confiscatórios.
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