Lili Boulanger: por conta de uma saúde extremamente frágil, bem como pelo fato de ter perdido o pai com apenas seis anos de vida, a obra de Boulanger é marcada pela melancolia
Lili Boulanger: por conta de uma saúde extremamente frágil, bem como pelo fato de ter perdido o pai com apenas seis anos de vida, a obra de Boulanger é marcada pela melancolia. Crédito: Arquivo

Onde estão as mulheres compositoras? A Orquestra Sinfônica do ES vai mostrar

Estão por toda parte – dirá o leitor ou a leitora mais atenta. Falta a elas apenas maior visibilidade. Até o século XVII, a maioria estava nos palácios, quando faziam parte da nobreza, ou confinadas nos conventos

Tempo de leitura: 6min
Publicado em 02/03/2024 às 10h00
  • Erico A. Mangaravite

    É delegado de polícia e crítico de música

Em 1990 foi publicada uma pesquisa na Inglaterra que mencionava o seguinte: discos de música clássica eram consumidos predominantemente por homens de classe média, sobretudo acima dos 35 anos. Tal pesquisa foi citada por Norman Lebrecht em seu livro “O Mito do Maestro”, no qual ele usou uma interessante comparação: “Entrando-se em qualquer loja de discos num fim de semana à noite, o que se vê são pais de família e maridos de classe média, plantados ombro a ombro ante as prateleiras dos novos lançamentos, como se estivessem num mictório.”

Hoje, as lojas de discos são um estabelecimento em extinção. E, nas salas de concerto, felizmente já se nota um público bem mais diversificado. A música clássica deixou de ser um passatempo para a turma do mictório e passou a fazer parte da vida de mais pessoas. Contudo, ainda há resquícios desse passado não tão distante. Com efeito: sabe-se que a imensa maioria das composições desse gênero musical foram criadas por homens. Mas onde estão as mulheres compositoras?

Estão por toda parte – dirá o leitor ou a leitora mais atenta. Falta a elas apenas maior visibilidade. Até o século XVII, a maioria estava nos palácios, quando faziam parte da nobreza, ou confinadas nos conventos. As histórias de muitas se perderam com o tempo. Das mais conhecidas, destacam-se a genial Hildegard von Bingen (1098-1179), monja beneditina, médica naturalista, teóloga, poetisa e dramaturga alemã, e Isabella Leonarda (1620-1704), freira italiana que compôs tanto obras sacras como composições puramente instrumentais de rara beleza.

A partir do século XVIII se percebe certa mudança, com a aparição de compositoras relacionadas a famílias já com certa tradição musical, como foi o caso de Maria Anna Mozart (1751-1829), irmã de Wolfgang Amadeus Mozart e filha de Leopold Mozart. Todavia, assim como ocorreu com Maria Anna, raras foram as partituras dessas compositoras que chegaram até nós, muito por conta do fato de que tais mulheres eram ofuscadas pelos homens compositores com as quais conviviam.

Mesmo nos casos em que as obras foram preservadas – e três casos emblemáticos são os de Fanny Mendelssohn (1805-1847), irmã de Felix Mendelssohn, Clara Schumann (1819-1896), esposa de Robert Schumann, e Alma Mahler-Werfel (1879-1964), esposa de Gustav Mahler -, tal preservação se restringiu a um número pequeno de obras, as quais, a bem da verdade, eram e ainda são raramente executadas em público.

O que se nota nas últimas décadas é um movimento de restauração desse repertório. E é fazendo parte desse movimento que nos próximos dias 6 e 7 a Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (Oses) apresentará, às 20h, no Sesc Glória, um repertório construído exclusivamente com obras de compositoras, contando ainda com uma regente convidada, a maestra Sarah Higino – que já dirigiu conjuntos como as Sinfônicas de Porto Alegre e Minas Gerais, além da Filarmônica de Montevideo.

As obras serão as seguintes:

"D'un matin de printemps" (“De uma manhã de primavera”), obra de Lili Boulanger (1893-1918). Essa foi a última partitura da compositora francesa, falecida precocemente aos 24 anos. Por conta de uma saúde extremamente frágil, bem como pelo fato de ter perdido o pai com apenas seis anos de vida, a obra de Boulanger é marcada pela melancolia. Porém, ao contrário da maioria de suas composições, “D’un matin de printemps” é uma peça mais leve e otimista, o que nos leva a lamentar ainda mais o curto tempo de vida de Boulanger. Ela, vale dizer, aos 19 anos venceu o prestigioso “Prix de Rome”, concurso cultural instituído pelo governo francês, tornando-se a primeira mulher a conquistar tal feito. O prêmio proporcionava ao vencedor um auxílio financeiro estatal que o permitia estudar em Roma, na Itália, por um período que poderia chegar a cinco anos. Berlioz, Gounod, Bizet, Massenet e Debussy foram alguns dos contemplados (curiosamente, Saint-Saëns e Ravel jamais obtiveram o prêmio, em que pese o último ter tentado por cinco anos consecutivos).

"Rasgos Latinos", da compositora uruguaia contemporânea Yanella Bia (1964). Bia é oboísta da Orquestra Filarmônica de Montevideo, também se dedicando à regência e às composições e arranjos. Utiliza uma linguagem eclética, mas fundamentada na tradição, e por ser instrumentista busca em suas obras expressar algo mais próximo da vivência cotidiana dos músicos do que um academicismo formal. “Rasgos latinos” mescla diversos ritmos latino-americanos, como a guaracha, a chacarera e o tango, promovendo uma aproximação entre a música clássica e a popular.

Música
Yanella Bia. Crédito: Arquivo pessoal

"Sinfonia Gaélica", da compositora norte-americana Amy Beach (1867-1944): sem dúvida, o grande destaque da programação. Não apenas pela extensão da obra, peça mais longa do concerto (cerca de 40 minutos), como pela história da compositora. Amy Marcy Cheney compôs suas primeiras obras com apenas 4 anos de idade, para assombro da família. Assim, passou a estudar formalmente piano com a própria mãe aos 6 anos, sendo capaz, em um curto espaço de tempo, de executar sem dificuldades obras de Beethoven e Chopin. Com menos de 10 anos de idade já era notório que Amy poderia estudar em qualquer grande conservatório da Europa. Todavia, sua família preferiu investir quase que exclusivamente em aulas de piano na cidade de Boston/EUA, pois se acreditava que uma mulher poderia ser pianista, mas jamais compositora.

Ainda assim, Amy, de forma autodidata, passou a transcrever por conta própria e de memória aquilo que ouvia nos concertos que frequentava, além de traduzir dois tratados de composição para o inglês. Em 1885 ela se casou com um médico vinte e quatro anos mais velho, passando a se apresentar como “Senhora H. H. A. Beach” (ou seja, as iniciais e o sobrenome do marido). O modelo familiar vigente previa que o marido fosse o provedor do lar, de modo que Amy passou a se apresentar raramente como pianista, em regra em eventos beneficentes. Dedicou-se com mais empenho, enfim, à composição. Com o apoio de um editor que via nela um imenso talento, em 1896 estreia sua “Sinfonia Gaélica”, primeira sinfonia publicada por uma mulher nas Américas. A obra, que emprega temas de origem britânica, sobretudo irlandeses, obteve imenso sucesso. Porém, diversos veículos da imprensa norte-americana publicaram algumas ressalvas: os trechos mais vigorosos da sinfonia chegaram a ser descritos como uma tentativa por parte da compositora de apresentar algo viril, incompatível com a natureza feminina.

Tais críticos, todos do sexo masculino, chegaram a aconselhar Beach a que passasse a compor de forma mais delicada, deixando as composições mais enérgicas apenas para os homens. Tempos depois, a "Sinfonia Gaélica" conquistou a Europa, sendo que um crítico alemão foi preciso ao afirmar que a obra comprovava que a competência de um compositor ou compositora deve ser avaliada pela sua obra, jamais pelo seu gênero.

O leitor e a leitora podem perguntar o seguinte: mas afinal, as obras dessas compositoras são boas ou ruins? Bem, só saberemos isso se tais obras forem apresentadas ao público. E ressalte-se: obras ruins de compositores homens foram e ainda têm sido apresentadas com frequência, sem maiores questionamentos em relação ao gênero. Então, ouçamos as obras das compositoras a fim de formarmos nossa própria opinião acerca do legado que elas deixaram.

SERVIÇO:

  • Dias: 6 e 7 de março de 2024
  • Horário: 20h
  • Local: Sesc Glória, Avenida Jerônimo Monteiro, 428 - Centro, Vitória - ES, Brasil

Orquestra Sinfônica do Espírito Santo - Oses

Sarah Higino, regente

Repertório:

Lili Boulanger: D’un matin de printemps

Yanella Bia: Rasgos Latinos

Amy Beach: Sinfonia em mi menor, Op. 32, “Gaélica"

Ingressos:

  • R$ 20 (inteira)
  • R$ 15 (conveniado)
  • R$ 12 (cartão-empresário)
  • R$ 10 (meia-entrada e comerciário)
  • R$ 10 + 1kg de alimento (meia solidária)

Maiis informações no site da Oses

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