Em 1808, foi pintada uma aquarela retratando uma apresentação do oratório “A Criação”, de Joseph Haydn. O compositor, com quase 76 anos de idade, é visto sentado em uma cadeira, de trajes formais e peruca branca, vestido à moda do século anterior. Em um olhar mais atento algo nos chama a atenção: Haydn é uma exceção entre os presentes. A avassaladora maioria não usa peruca. E aqui o caro leitor pode se perguntar qual a relevância dessa capilar informação em um texto sobre música. Calma, chegaremos lá!
A infância de Joseph Haydn foi dura. Nascido em 1732 em uma minúscula vila austríaca, demonstrou precocemente aptidão para a música. Por esse motivo seu pai o mandou residir, aos seis anos de idade, na casa de um parente, que dirigia um coral em uma cidade maior. Longe dos genitores o pequeno Joseph vivia com fome e vestindo roupas sujas. De alguma forma ele foi descoberto por um regente da capital do Império, Viena, e com aproximadamente oito anos foi tentar a vida lá.
Em termos musicais houve um ganho imenso, mas Haydn ainda sofria para se alimentar direito. Na luta pela sobrevivência, buscava se destacar como cantor, pois nos eventos em que se apresentava eram servidos alguns petiscos para os artistas. Com o passar dos anos, Haydn teve que se virar após uma demissão inesperada, indo morar de favor no sótão da família de um colega enquanto buscava alguma atividade remunerada na área da música.
Finalmente em 1757 ele conseguiu um bom emprego como diretor musical no palácio de um conde. A estabilidade financeira permitiu ao jovem Haydn se casar. Infelizmente, o casamento não deu certo. Como não havia divórcio, o casal permaneceu formalmente unido por 40 longos anos.
Pouco tempo depois ele seria contratado pela rica família Esterházy e, ao que tudo indicava, se aposentaria ali mesmo. A vida seguiu pacata até 1790, quando uma situação de sucessão na família Esterházy fez com que cessassem os empregos para músicos naquela casa. Por consideração ao velho (para os padrões da época!) Haydn, este permaneceu com um salário e uma pensão.
Felizmente ele recebeu um convite de um empresário para viajar e se apresentar na Inglaterra. Aos 58 anos, Haydn viu o mar pela primeira vez. A viagem rendeu frutos tão positivos para o compositor que houve um segundo convite anos depois. Ao retornar para Viena em 1795 Joseph Haydn era um homem famoso, que havia faturado um bom dinheiro com suas composições e apresentações, querido pelo público ávido por novas composições de sua lavra e que até havia redescoberto o amor, por meio de um relacionamento, ainda que platônico, com uma viúva londrina.
Foi nesses tempos de merecido reconhecimento e grande inspiração que Haydn recebeu uma encomenda: escrever o oratório “A Criação”. O texto era do próprio mecenas, o Barão van Swieten, que também atuava como uma espécie de produtor musical de Haydn, fazendo sugestões pertinentes em alguns aspectos da composição. Graças às experiências londrinas, Haydn conhecia bem os oratórios de Handel, autor de obras como “O Messias” e “Israel no Egito”. O sucesso foi tremendo: até reforço policial foi necessário na estreia da obra, em 1798.
Provavelmente o último grande compositor clássico no sentido estrito do termo seja Haydn (Schubert e Beethoven já se arriscam no Romantismo). Nesse sentido, "A Criação" é emblemática por ser uma das grandes obras do apagar das luzes deste período. Há, vale dizer, um primeiro e discreto passo rumo à Era Romântica: uma longa e sombria introdução instrumental, que descreve o Caos, a ausência de matéria antes da criação do mundo.
Foi algo muito inovador para aqueles tempos. Todavia, no resto do oratório o idoso Haydn preferiu optar pela segurança das formas clássicas, em uma sequência de recitativos, árias e coros que encantam o ouvinte pela beleza das melodias e pela riqueza das cenas que descrevem as ondas ruidosas do mar, a tranquilidade dos riachos que atravessam silenciosos vales, o doce odor das flores e outras maravilhas da criação divina.
Na aquarela de 1808 é mostrada a última apresentação à qual Haydn compareceu. A Europa daqueles dias já não era mais a mesma da infância de Haydn: as monarquias corriam sério risco. Em 1804 Napoleão Bonaparte coroou a si mesmo imperador da França. Até então, as cortes europeias exigiam como parte do traje formal uma peruca branca, que foi abolida pela sua associação com a nobreza em decadência.
Haydn era um brilhante artista, ainda associado a esse velho mundo. Já o novo mundo estava associado a cabelos mais revoltos, como os de um jovem nascido em 1770 em Bonn, na Alemanha, chamado Ludwig van Beethoven, que dedicara uma de suas obras mais revolucionárias a Napoleão Bonaparte – rasgando a dedicatória assim que o francês se declarou Imperador. Mas essa é história para outro concerto...
ORQUESTRA SINFÔNICA DO ES APRESENTA "A CRIAÇÃO"
Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (Oses) apresenta o oratório “A Criação” (1798), de Franz Joseph Haydn, nesta quarta (27) e quinta-feira (28). Os concertos acontecem sempre às 20h, no Sesc Glória, Centro de Vitória. Os ingressos estão disponíveis na bilheteria do Sesc Glória e também de forma online. Eles custam R$ 20 (inteira), R$ 12 (conveniado), R$ 10 (meia-entrada e cliente com credencial do Sesc) e R$ 10 (meia-entrada solidária, com doação de 1kg de alimento).
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