Há 60 anos, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) foi alvo da mais flagrante e dramática violação do princípio universal e constitucional da autonomia universitária de seus 70 anos de história. A histórica edição do 11 de abril de 1964 do extinto matutino carioca Correio da Manhã (CM), fez muito mais do que noticiar a cassação do mandato de 39 deputados federais e um senador e dos direitos políticos de 100 pessoas, pelo regime instalado no Brasil no primeiro dia daquele fatídico mês. Aquele era apenas o começo da sanha autoritária em que o Brasil seria mergulhado por longos 21 anos.
Uma matéria publicada na página 10 da mesma edição do CM informava que o então ministro da Educação, Luiz Antônio da Gama e Silva, havia anunciado a decretação de intervenção, ad referendum do Conselho Federal da Educação (CFE), na Universidade do Rio Grande do Sul (URGS) e na então Universidade do Espírito Santo (UES) – hoje Ufes. Naquela época, nenhuma das universidades federais ostentava o "Federal" em suas denominações oficiais.
Gama e Silva havia sido nomeado ministro por Ranieri Mazzilli, empossado interinamente na Presidência da República, na madrugada do dia 2 de abril, pouco depois que o presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, declarou a vacância da chefia do Poder Executivo, depondo o presidente João Goulart (Jango). Este, poucas horas antes, havia se dirigido para Porto Alegre para discutir a possibilidade de resistência ao golpe civil-militar iniciado no dia 31 de março, que naquele momento já havia ganhado corpo e mobilizado o apoio das principais unidades militares do país.
A justificativa dada pelo ministro da Educação para o arbitrário ato de intervenção nas universidades se resumiu a um suposto "interesse da segurança nacional", que naturalmente ele não explicou qual era. E nem precisava, pois estávamos entrando num regime de exceção. Assim, o então reitor da Ufes, Manoel Xavier Paes Barreto, foi sumariamente afastado do cargo e, para seu lugar, Gama e Silva nomeou o professor Fernando Duarte Rabelo, que atualmente dá o nome a uma das mais tradicionais escolas da rede estadual localizadas em Vitória.
Um reitor esquerdista na Ufes?
O professor Manoel Xavier Paes Barreto não tinha e nunca teve nenhum pendão esquerdista e foi desembargador do Tribunal de Justiça do Estado (TJES). Na sessão do Conselho Universitário realizada no dia 8 de abril, quando já havia rumores da intervenção na UES, o reitor chegou a questionar os demais conselheiros, se não deveria publicar uma nota da Reitoria em solidariedade ao "movimento democrata revolucionário". No entanto, a ata da sessão mostra que a maioria dos conselheiros considerou a atitude “desnecessária”, pois a "linha democrática do reitor era deveras conhecida”.
Paes Barreto havia sido indicado e recebeu apoio para o ocupar cargo de reitor do então deputado federal Raimundo Oliveira Neto, vinculado ao grupo Compacto do PTB, que entre outras coisas havia sido o relator na Câmara Federal do fracassado projeto de lei de reforma agrária proposto por Jango. O parlamentar petebista, cuja principal base eleitoral era Colatina, fazia parte da primeira leva de 40 parlamentares cassados pelo primeiro Ato Institucional baixado pela ditadura.
A cassação do mandato de Oliveira Neto foi tornada pública no mesmo dia em que o MEC anunciou a intervenção na UES, um dia marcado por consternação, choros e protestos no Congresso Nacional, em Brasília. Há de se estranhar que seu nome tenha sido praticamente esquecido e não seja lembrado no Espírito Santo em detrimento de outros que serviram fielmente à ditadura militar.
Memórias de um adolescente: o homem do terno preto
No depoimento que prestou à Comissão da Verdade da Ufes, em 2012, Marcelo Paes Barreto, o filho do reitor destituído, que na época do golpe ainda era um adolescente, contou que se lembrava de um "enviado" do MEC, que esteve e almoçou alguma vezes na casa onde residia a sua família, na Praia do Canto. O nome ele não lembrava mais, mas o descreveu como sendo “um homem de terno preto, que tinha um bigode muito grande e usava chapéu e bengala”.
O enviado do MEC provavelmente era Hélio Monteiro de Toledo Salles, cujo nome é citado na ata da sessão do Conselho Universitário da UES , realizada em 13 de abril de 1964, a primeira depois da decretação da intervenção na futura Ufes. Marcelo contou que, embora não entendesse bem o que o enviado do MEC e seu pai conversavam, lembra do primeiro ter mencionado uma suposta situação de "bagunça" na Faculdade de Medicina, refutada pelo reitor, que dizia ter controle da situação na universidade.
Marcelo relatou ter acompanhado o pai e o enviado do MEC em visitas às faculdades que compunham a Ufes, que na época ficavam espalhadas pela cidade de Vitória. Em outro almoço na casa da família Paes Barreto, o filho do ex-reitor contou que o “homem do terno preto” comunicou ao seu pai que ele teria que acompanhá-lo numa viagem ao Rio de Janeiro. Com receio que acontecesse algo com o reitor quando chegasse à capital do antigo Estado da Guanabara, a mãe de Marcelo exigiu que o filho fosse levado junto.
Ao desembarcarem no Rio de Janeiro, antes de deixarem o Aeroporto Santos Dumont, Marcelo conta que o pai resolveu comprar um jornal - ele não lembrava qual seria a publicação -, que teria uma manchete anunciando que o reitor da então UES havia pedido demissão do cargo. "Aí papai disse: 'mas eu não pedi demissão'. O homem bateu nas costas dele e disse: 'Vá com calma. Se dê por satisfeito'. Eu até hoje tenho curiosidade de saber que processo foi esse e que demissão foi essa", desabafou.
De acordo com Marcelo, seu pai tinha uma amizade forte com Jango, que costumava vir com alguma frequência ao Espírito Santo. Segundo seu relato, ele chegou a participar de alguns almoços com o presidente em Brasília e em churrascos organizados pela equipe que acompanhava Jango, num sítio localizado Domingos Martins.
Porém, embora tenha sido destituído do cargo de reitor, Manoel Xavier Paes Barreto continuou sendo professor do curso de Direito da Ufes por mais 15 anos, até se aposentar no cargo. Uma prova de que o alvo principal da arbitrariedade era mesmo o deputado federal Ramon de Oliveira Neto, que além de ter o mandato cassado, ainda teve que responder um Inquérito Policial Militar (IPM), aberto pelo regime para investigar as supostas atividades “subversiva” e ação dos comunistas em Colatina, na região noroeste do Espírito Santo, seu principal reduto eleitoral.
A intervenção nas atas do Conselho Universitário da Ufes
O jornal A Gazeta noticiou a destituição de Paes Barreto da Reitoria da UES na edição do dia 12 de abril. A notícia foi passada ao matutino capixaba pelo então deputado federal Dirceu Cardoso (PSD), autor da lei que que federalizou a UES, sancionada em 1961, pelo então presidente Juscelino Kubistchek de Oliveira (JK).
Na matéria, o parlamentar pessedista que, ironicamente, anos depois seria eleito senador pelo MDB (1975-1983), partido de oposição ao regime, e secretário de Segurança Pública durante o governo de Gerson Camata (1983-1986), primeiro governador eleito diretamente pela oposição no período de transição democrática do país, informou que Duarte Rabelo assumiria interinamente o cargo, até que fosse feita uma nova lista tríplice para escolha do reitor definitivo da UES.
Porém, caberia ao próprio professor Duarte Rabelo a costura de um novo arranjo para dar um ar de legalidade e legitimar a extemporânea decisão do ministro Gama e Silva. Na sessão realizada pelo Conselho Universitário da UES no 13 de abril, o vice-reitor Alaor Queiroz de Araújo, que presidiu a reunião, relatou que ainda não havia sido informado oficialmente da intervenção e que, por conta disso, havia procurado o interventor nomeado, que também participava da reunião, para saber como deveria proceder.
Conforme a ata, Duarte Rabelo havia aconselhado Alaor a assumir interinamente a reitoria e relatou ter conversado com o coronel Newton Fontoura Reis, então comandante do 3º Batalhão dos Caçadores (3º BC), localizado na Prainha, em Vila Velha - atual 38º Batalhão de Infantaria (38º BI) -, transformado naqueles dias em representante máximo do “comando revolucionário” no Espírito Santo.
Na conversa, o comandante do 3º BC teria concordado com o interventor nomeado que o melhor a ser feito seria aguardar as “formalidades legais” para que o futuro reitor pudesse assumir o cargo. No entanto, o coronel Fontoura Reis advertiu que o vice-reitor só permaneceria no cargo interinamente, enquanto continuasse a “merecer a confiança do Conselho Universitário”.
Coube ao próprio Duarte Rabelo então, propor uma moção, aprovada pelo Conselho, de apoio ao vice-reitor em exercício. A votação foi presidida por ele mesmo, já que Queiroz de Araújo, segundo o registro da ata, preferiu abster-se de presidi-la, “por uma questão de foro íntimo”.
Após a aprovação da moção, o conselheiro Céphas Rodrigues Siqueira propôs que os membros do Conselho Universitário fossem pessoalmente até o quartel do 3º BC, para entregar a decisão ao coronel Fontoura Reis. E assim foi feito: a reunião foi suspensa e só encerrada quando os conselheiros voltaram da Prainha, lembrando que, na época, a única ligação entre a Ilha e o município de Vila Velha por via terrestre era através da antiga rodovia Carlos Lindenberg, passando pela Ponte Florentino Avidos, conhecida como Cinco Pontes.
Nomeação do reitor imposto
Numa nova sessão do Conselho Universitário realizada no dia 27 de abril, os nomes dos professores Serynes Pereira Franco e Beresford Martins Moreira se juntaram ao de Duarte Rabelo para compor a lista tríplice enviada ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). A ata da sessão mostra que, dessa vez, coube ao conselheiro Christiano Wellfell propor uma nova ida dos conselheiros até o representante do “comando revolucionário” no Espírito Santo, dessa vez para “dar conhecimento” da elaboração da lista tríplice.
Não há nos 70 anos de história da Ufes desde sua criação, em 1954, nenhum outro episódio parecido de flagrante violação do princípio da autonomia universitária. Tudo já estava decidido de antemão, a escolha do professor Fernando Duarte Rabelo foi tutelada e ele foi formalmente nomeado para o cargo de reitor um mês depois pelo marechal Humberto Castelo Branco, primeiro dos cinco generais-presidentes do regime instalado em 1º abril de 1964. A análise das atas nos leva a deduzir que Duarte Rabelo não queria mesmo é passar pelo constrangimento de assumir o cargo de reitor na condição de interventor.
O novo reitor, no entanto, permaneceria pouco tempo na cadeira. Ele se afastaria do cargo no final de 1965, por “motivo de saúde”, em meio a nebulosas investigações feita pelo MEC e CFE sobre supostas irregularidades na já agora Ufes (o Federal foi incluído na denominação da universidade naquele mesmo ano). Ao final, segundo o livro do professor Ivantir Borgo (Ufes: 40 anos), já falecido, nada teria constatado de grave e nenhuma responsabilidade atribuída ao reitor licenciado.
No entanto, Duarte Rabelo não retornou mais ao cargo de reitor, se aposentando pouco depois como professor da universidade. A maior parte do seu mandato de três anos seria concluída pelo vice-reitor, professor Alaor Queiroz de Araújo, que posteriormente seria reconduzido para cumprir um novo período como titular no cargo de reitor.
Ele conduziu a construção das instalações dos campi de Goiabeiras e Maruípe e a reformulação administrativa e acadêmica da Ufes, nos moldes da reforma universitária da ditadura, formulada por um técnico estadunidense da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), Rudolph Atcon. Mas essa é outra história.
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