A história do Brasil desde que se tornou independente, há 200 anos, é marcada por impasses e contradições que foram sendo sublinhados ou cuja necessidade de solução sempre foram sendo jogadas para debaixo do tapete. Em momentos de grandes conflitos ou ameaças de rupturas, sempre prevaleceu a tendência para acordos, conciliação e pactos das classes dominantes e suas representações políticas.
Os acontecimentos dos últimos anos, como o golpe parlamentar que levou ao impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (2016), a polarização política e os episódios grotescos que marcaram o período presidencial do ex-capitão do Exército, Jair Messias Bolsonaro, e por fim, a bizarra intentona golpista de apoiadores do ex-capitão e agora ex-presidente, no último dia 8 de janeiro, parecem demostrar que o acúmulo de permanências ao longo desses 200 anos nos levou a uma encruzilhada histórica em que muitos desses impasses não têm mais como ser jogados para debaixo do tapete. Eles estão cobrando seu preço, e ele pode ser muito alto.
Em 1822, quando o príncipe regente D. Pedro proclamou a independência política do país, para manter a estrutura oligárquica colonial, baseada no latifúndio e no trabalho escravo, num momento em que o capitalismo se expandia e parte da Europa já vivia a onda do desenvolvimento econômico provocado pela primeira fase da Revolução Industrial, as classes dominantes luso-brasileiras não hesitaram em apoiar a transformação do Brasil na única monarquia entre os países do continente americano. Um império que ainda tinha a peculiaridade de ser governado pela mesma dinastia que reinava em sua antiga metrópole, os Bragança.
Poucos anos depois, a agitação política do período regencial (1831-1840), cuja singularidade foi desencadear revoltas com amplo engajamento popular como a Cabanagem (PA), a Balaiada (MA) e a Revolta dos Malês (BA), bem como outras que chegaram a desenvolver a experiência republicano - é o caso da Revolta Farroupilha, que proclamou a repúblicas do Piratini (RS) e Juliana (SC).
Como esses movimentos colocaram em risco tanto a integridade territorial da antiga colônia portuguesa quanto os privilégios da estrutura oligárquica colonial e escravista, as classes dominantes do período não hesitaram em lançar mão do Golpe da Maioridade, que levaram D. Pedro II ao trono com apenas 14 anos de idade.
O golpe da proclamação da República, em 1889, ao qual segundo um cronista da época, o povo assistiu “bestializado”, não poderia ter ocorrido se não tivesse o aval e patrocínio das oligarquias rurais latifundiárias. Contudo, ele acrescentaria ao pacto de dominação das elites, um novo componente: as Forças Armadas (FFAA), em especial o Exército. Influenciadas pelos ideais positivistas. Daí para a frente, as FFAA jamais se confirmariam em ser simples avalista das repactuações e a celebração de novos pactos de dominação, passando a atuar sempre também no palco principal.
E assim foi durante todos os momentos marcantes da história do Brasil Republicano: o Levante de 1930, o golpe do Estado Novo (1937); o golpe que deu fim ao governo ditatorial de Getúlio Vargas (1945); o suicídio de Vargas (1954); o contragolpe do Marechal Henrique Lott que garantiu a posse de Juscelino Kubistchek de Oliveira (JK), em 1955; a tentativa de golpe que levou o pais a uma efêmera e fracassada experiência parlamentarista (1961); o golpe civil-militar de 1º de abril de 1964; o golpe dentro do golpe que escancaria o terrorismo de Estado dos Anos de Chumbo (1969-1976) e, entre 1984 e 1985, o pacto que selou a saída de cena do regime militar e a edificação da chamada Nova República, cujo marco fundamental seria a promulgação da Constituição Federal de 1988.
O fato é que não se trata de mera interpretação do artigo 142 da Constituição Federal, que por sinal é totalmente falsa, estapafúrdia e absurda, mas a verdade é que parece que grande parte dos militares brasileiros, os integrantes das FFAA, acreditam mesmo que são fiadores do regime republicano no Brasil e que, portanto, devem exercer sobre ele um poder que, no período do Brasil monárquico, era exercido pelo imperador, "pela graça de Deus”. Trata-se do Poder Moderador, extinto com a Proclamação da República, mas que militares acreditam que a eles foi creditado.
São crenças ideológicas, que ao longo do período republicano foram ganhando novos componentes, a maioria de caráter autoritário, como na época do tenentismo e das revoltas militares da década de 1920. Mais tarde, tivemos a Guerra Fria, iniciada depois fim da 2ª Guerra Mundial, que inclusive impulsionaria o expurgo dos setores nacionalistas da FFAA no período posterior ao golpe de 1964. Não por acaso, foi justamente entre os militares onde ocorreram o maior número de prisões e cassações durante todo período ditatorial (1964-1985) e onde a anistia política foi mais complicada depois da redemocratização.
As permanências e rupturas são conceitos caros a um historiador na observação e estudo dos fenômenos e processos históricos. As permanências não significam que as transformações necessariamente deixam de ocorrer, mas sim que elas ocorrem de forma mais lenta. O historiador britânico T.H. Thompson afirmou que as transformações no campo cultural e ideológico ocorrem de forma mais lenta.
O governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro colocou a nu a contradição de um dos vértices do pacto das elites firmado em 1985, ao abrir a porteira do gueto onde os militares das FFAA haviam se aquartelado desde então, colocando milhares deles para ocuparem cargos comissionados na administração federal. Muitos dos generais e outros oficiais do Exército que passaram por esses cargos provavelmente foram contemporâneos do ex-capitão no seus tempo de formação na Espcex (Escola Preparatória de Cadetes do Exército) e Aman (Academia Militar das Agulhas Negras).
Desde que uma cultura militar foi tomando forma no Brasil, depois da Guerra do Paraguai, e a emergência dos ideais positivistas em suas corporações, no período que antecedeu à queda do regime imperial, os militares sempre se viram como parte de um universo próprio - aliás, no Brasil de tantas contradições, hierarquias e desigualdades sociais e permanências históricas, os militares não são a única categoria social a pensar assim -, diferentemente do mundo dos "paisanos", como eles chamam os civis.
No entanto, a porteira aberta durante o governo extremista de Bolsonaro mostrou que, no período que se passou depois que a ditadura militar saiu de cena, o abismo entre esses dois mundos se tornou muito mais profundo. No universo paralelo montado e mantido trancado no gueto pelas FFAA durante 34 anos, até a chegada de Bolsonaro ao poder, o tempo parou na década de 1960, durante a época da Guerra Fria e da elaboração da doutrina da Segurança Nacional e do "inimigo interno" a ser combatido. Os generais, almirantes e brigadeiros que hoje compõem o Alto Comando, e os que antecederam nos últimos governos, foram todos formados durante o período da ditadura.
Mas pior do que isso é saber que a formação dos oficiais parece também ter permanecido a mesma, em todos os níveis. Os cursos de formação de militares continuam falando em "revolução de 1964", "combate ao comunismo" e ao “inimigo interno”. Nesse universo paralelo, os setores de "inteligência" ganharam vida própria e trabalham para dentro das próprias instituições militares, não para os governos que foram eleitos democraticamente.
Aliás, nem para o Estado, pelo menos não em sua representação característica de uma democracia liberal, porque afinal os militares parece considerar as FFAA a própria personificação do Estado e eles seus guardiões.
A cumplicidade das FFAA e de seus órgãos de "inteligência" com a aventura golpista do último dia 8 de janeiro de 2023 deixou fortes digitais, que não têm como ser apagadas, que vão do acobertamento e estímulo ativo aos acampamentos nas portas dos quartéis até a completa inação diante da invasão pela porta da frente do Palácio do Planalto.
Enquanto isso, as mesmas imagens que mostram essa inação também mostram policiais legislativos e do Judiciário fazendo o que podiam para defender as instalações do Congresso Nacional e STF (Supremo Tribunal Federal), mesmo em número muito inferior e sem ter o mesmo treinamento para enfrentamento de distúrbios daquela ordem, como tinha por exemplo o corpo da Guarda Presidencial.
O momento histórico em que vivemos parece nos mostrar que a sorte está lançada, se quisermos falar num futuro próximo para a democracia no Brasil. Como dissemos anteriormente, o Brasil parece ter chegado a uma encruzilhada, um impasse histórico, em que parece não haver mais espaço para colocar novos esqueletos no armário e nem para jogar a sujeira para debaixo do tapete.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.