Comemoram-se em dezembro duas datas significativas: os 78 anos de nascimento do escritor Reinaldo Santos Neves e os 70 anos de sua literatura. Aos 8 anos, o filho do pesquisador Guilherme Santos Neves produzia suas primeiras histórias, inserindo-o num universo no qual se tornaria um grande mestre.
O marco septuagenário de sua monumental obra requer celebração, reconhecimento, homenagens e agradecimentos por dar ao mundo novos mundos, múltiplos e labirínticos, que recuperam e transformam diversas tradições. Seu livro de estreia, Reino dos Medas (1971), Menção Honrosa no Prêmio do Instituto Nacional do Livro de 1973, inaugura a trilha sonora que o acompanhará pelas décadas seguintes, na vida e na literatura: o jazz.
Mas as angústias existencialistas dessa época logo cedem lugar a caminhos inesperados. Em 1978, A crônica de Malemort, com linguagem que emula o português arcaico, abre uma linha de força sobre o Medievo, que será recuperada em A longa história (2007), cuja centralidade recai sobre o fascínio que uma história pode causar.
Décadas depois, Reinaldo retorna ao mundo medieval ao assumir a função de Escritor-Residente junto à Secult. Como resultado desse projeto, publica a impressionante trilogia bilíngue A folha de hera, em três volumes (2011, 2012 e 2014), que consiste na tradução de A crônica de Malemort para o inglês arcaico e sua posterior nova versão para o português. Para a coexistência dessas três crônicas, o autor expande o universo da ficção em processo sem paralelos na literatura brasileira, com camadas de autorias e falsas atribuições que desafiam os leitores mais exigentes.
As mãos no fogo (1984), seu terceiro livro, dá sequência à exploração de outras tradições, pondo em cena a obra do português Gil Vicente. Aqui nasce um personagem fundamental de seus romances, Graciano, também reconhecido em “O poema graciano” (1982) e A ceia dominicana: romance neolatino (2008). Neste, as desventuras de Graciano após o naufrágio de seu casamento se passam numa mítica e profana praia de Manguinhos, que se torna cenário para a recuperação de uma obra da Antiguidade, o Satíricon, escrita por Petrônio no século I d.C.
Os 70 anos de literatura de Reinaldo Santos Neves
O espaço urbano de Vitória também faz parte de suas histórias. Sueli: romance confesso (1989) transporta as agruras do amor não correspondido para as ruas da capital capixaba, mas numa versão assumidamente romanesca, em que a realidade reconhecível se dobra diante do mundo criado pela ficção: aqui, Reinaldo é e não é Reynaldo; Suely é e não é Sueli, pois se tornaram seres literários. “A função maior do homem no mundo, a meu ver é transformar-se em literatura”, diz o autor na orelha do livro. Outra musa de tinta e papel, Jose, também será cantada literariamente nos versos que recuperam a tradição do soneto shakespeareano em Muito soneto por nada (1998).
A instituição máxima é a literatura, isto é, a Literatura. Também nela uma fictícia cidade de Victória recebe o encontro do mito de Cinderela com a vida de uma jovem do início dos anos 2000 que dá nome e protagoniza o romance Kitty aos 22: divertimento (2006), com algo dos romances detetivescos de Raymond Chandler.
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Para além de gêneros como contos, crônicas, novela, infanto-juvenil, traduções, ensaios e estudos, Reinaldo ainda publicou outros dois romances nos últimos anos: Blues For Mr. Name ou Deus está doente e quer morrer (2018), um “romance apocalíptico”, como afirma o autor, que reúne, como num palimpsesto, fontes e tradições de diversas partes e diversos tempos, da Bíblia ao contemporâneo; e Morte em V. (2023), com referências à “Morte em Veneza” (1912), de Thomas Mann, que matiza uma espécie de “autobiografia literária” em que literatura e realidade não se separam mais por uma barreira intransponível. Elas dão forma a uma nova vida, à vida literária, esta em que Reinaldo é um monumento da cultura capixaba, um monumento da literatura brasileira, um monumento a ela, e sempre a ela: a Literatura.
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