Uma cena imaginada pelo jornalista Marien Calixte, e descrita na biografia de Maurício de Oliveira, ilustra bem como se traçou o destino daquele que é considerado o maior músico do Espírito Santo. Conta Marien que o então menino Maurício, oitavo filho do pescador Sebastião e da lavadeira Maria, navegava com o pai na baleeira de onde seu Sebastião trazia os peixes que sustentavam a família.
Sebastião sonhava ver o filho seguindo a tradição familiar da pesca, mas àquela altura Maurício tinha sido fisgado pela música, em especial o violão e o cavaquinho, que aprendera a tocar desde os seis anos de idade por meio do primo Alfredo e do irmão José. Em dado momento, o pai teria lhe perguntado:
— O que você quer ser na vida?
— Pescador de sons — respondeu Maurício.
O olhar criterioso do biógrafo capturou a essência da alma do músico, cuja relação com o violão era tão intensa — e até certo ponto devocional — que ele gostava de afirmar: “O violão é a minha alma, a minha alma é o violão”.
A história de Maurício de Oliveira se relaciona com a evolução da música do Espírito Santo no século XX e ficará marcada para a posteridade como uma das obras mais relevantes para violão produzidas no país. Talento precoce, Maurício não demorou a convencer o pai de que faria da música profissão. Com dez anos, começou a participar do Regional da futura Rádio Clube do Espírito Santo.
Entre 1940 e 1955, dividia seu tempo como músico contratado da PRI-9, a Voz do Canaã, e a atuação intensa nas orquestras dos clubes de Vitória. Até que, em 1955, surgiu a oportunidade que marcaria sua vida: representar o Espírito Santo no V Festival Internacional da Juventude para a Paz e Amizade, em Varsóvia, na Polônia.
No palco do Palácio da Cultura e da Ciência, diante de um público de cerca de três mil pessoas, Maurício superou a barreira do idioma, seguiu o conselho do irmão José — “ponha o coração nos dedos — e apresentou lindamente três números ao violão, incluindo a fantasia de sua autoria “Canção da Paz”, que se tornaria a sua composição mais conhecida. Aclamado pelo júri e pelo público do distante país do leste europeu, ele obteve o segundo lugar no Festival, abrindo a possibilidade real de construir uma carreira internacional, ou de trabalhar no eixo Rio-São Paulo, onde a oferta de oportunidades era bem maior. No entanto, Maurício amava o Espírito Santo e o povo capixaba a tal ponto que não conseguiria viver longe da terra natal.
De volta ao Espírito Santo, ele fez parte do Conjunto de Hélio Mendes, comandou orquestras nos clubes da Grande Vitória e dedicou-se à carreira fonográfica, iniciada em 1952 com o compacto simples contendo as músicas “Ardiloso” e “Esplanada”; para muitos, este é o primeiro registro em disco de um músico capixaba. Sempre pioneiro, gravou mais de 20 discos, entre LPs e CDs, a maioria solo e uma parte como integrante do Conjunto de Hélio Mendes. Destacou-se ainda como o primeiro violonista a gravar a obra completa de Heitor Villa-Lobos para violão, em 1967. Mais à frente, acrescentaria à sua discografia títulos dedicados às obras dos baluartes do choro Dilermando Reis e Ernesto Nazareth.
Em 1985, por ocasião da comemoração dos 30 anos da Condecoração Cidade de Varsóvia, a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa) reuniu as duas vertentes do violonista no long-playing “Erudito e Popular”, que também ganhou edição da Universidade Federal do Espírito Santo, por meio da Fundação Ceciliano Abel de Almeida. Participaram das gravações Maurício de Oliveira (violão e cavaquinho), o filho Tião de Oliveira (violão e cavaquinho), Pedro Salgado (violão de sete cordas), Pedro Denizar (violão), Edílio Santos (contrabaixo), Dario Lima (ritmista), Ayrton Borges (bandolim) e Abner Ferreira da Costa (violão). Assina a produção executiva o amigo Marien Calixte.
De uma maneira geral, a ideia do LP consistia em apresentar, no Lado A, a faceta popular do compositor e, no Lado B, a sua vertente clássica, com composições exclusivamente de sua autoria. No lado popular, destacam-se temas como o baião “Ardiloso”, a valsa “Luiza”, o samba-choro “Mexe-mexe,” o choro “Contando Estrelas” - resposta de Maurício de Oliveira ao clássico “Pedacinhos do Céu”, de Waldir Azevedo – e “No Tempo de Nazareth”, em homenagem ao pianista e compositor Ernesto Nazareth (1863-1934).
Nas três faixas que compõem a segunda parte do álbum — “Canto Latino Nº 1”, “Canção da Paz” e “Concerto para Dois Violões, em Lá” —, o violonista apresenta os conhecimentos que assimilou durante sua formação em música erudita, no Rio de Janeiro, quando estudou harmonia, contraponto, fuga e regência de orquestra com o regente, musicólogo e compositor José Siqueira. Todas trazem o conhecido rigor e perfeccionismo de Maurício de Oliveira.
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Uma prova da devoção ao instrumento que abraçou desde a mais tenra infância é que “Canção da Paz” se tornou uma espécie de hino não-oficial do seu Estado, graças ao seu aspecto descritivo e a paz de espírito que proporciona àqueles que são tocados por sua melodia. Por entre os dedilhados dessa canção desfilam imagens das belezas naturais dessa terra abençoada que é o Espírito Santo – a terra de Maurício de Oliveira.
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