“Para aguçar os seus sentidos e aumentar sua experiência sensorial recomendamos o uso do fone de ouvido”. É a orientação de uma das plataformas que hospeda "Peregrinos", audiossérie ficcional do Grupo de Teatro Rerigtiba, com direção e dramaturgia assinadas por Nieve Matos.
Sigamos as instruções. A experiência prenunciadamente distópica proposta pelo grupo que comemora 28 anos de vida, em Anchieta, poderá nos levar justamente ao hoje. Os fones de ouvido nos convidam ao dentro e ao entre. Para dentro de nós, quando nossa respiração e fluxo cardíaco são coadjuvantes imponentes na narrativa. Ao entre, quando nos aprofundamos nessa proposta que foge de maniqueísmos ao constatar a complementariedade entre luz e sombra; certo e errado; verdades e mentiras.
Depois de tudo, ano zero-um: no território chamado Desterro ainda há rebeldes Peregrinos que não se submetem à exploração dos Proprietários: donos de toda produção e capital das propriedades privadas, comandadas pelo Proprietário Geral da Nação e seus generais. Peregrinos e Proprietários são versões de todos nós.
Perseguições, fugas, resgates e emboscadas são desenhadas por uma impecável costura de efeitos sonoros que proporcionam uma vivência auditiva em campos de guerra. Inspirada em romances policiais, jogos de RPG e no universo gamer, a disputa pela guarda dos irmãos adolescentes Ana e Sol - chamados Inocentes - personifica disputas territoriais, políticas, econômicas e filosóficas entre polos de uma sociedade.
Ana e Sol foram criados e treinados pelo exército Proprietário. Ela tem na habilidade da escuta profunda o dom que é a arma mais estratégica desta guerra. Depois da experiência de quase extermínio da classe dos Peregrinos, ela e seu irmão permanecem sob a guarda daqueles que detêm menor poder. Em um mundo sem cores, militarizado e castrado, há apenas como memória as atuais “Ciências Proibidas”: antropologias, sociologias e artes, que – tal como em nossa condição atual – esmolam por sobrevivência. Mesmo convictos quanto ao lado para o qual direcionam seus esforços, Ana, ainda mais que Sol, frequentemente questiona a legitimidade de ter seus dons igualmente explorados como arma de guerra.
Enquanto o pensamento adestrado angustia-se sobre o quanto ainda resta, a mais importante questão parece debruçada sobre o quando há que ainda nem sabemos. As inserções de um narrador com uma voz eloquente e em tom desgastado, a Voz Ancestral, se fazem presentes em toda jornada de Peregrinos e denotam uma sabedoria anciã e profética.
A dramaturgia teatral concentrada nos estímulos sonoros também convoca para um mundo em que o som vigente é o silêncio pautado pelo medo. Botas em marcha anunciam o pronunciamento do Proprietário Geral da Nação, que demoniza a ousadia, a criatividade e o pensamento crítico. Sons de folhas e vento denotam a aridez presente na poeira que incide sobre a necessidade de forjar novos destinos. Em quaisquer das arestas não parece de modo algum haver espaço para felicidade, exceto no amor revolucionário.
A inocência, antes usada como um grande arsenal de guerra, ainda parece habitar os sonhos daqueles que lutam por um mundo igualitário. Flora é uma importante agente na jornada pela libertação peregrina. Durante a trama, ela usa seus acessos para abrir trincheiras e personifica constrangimentos existenciais daqueles que parecem assumir a consciência de seus privilégios sociais. Flora sempre quis ser atriz e traz na relação com a arte sua própria emancipação.
Entre um episódio e outro, podemos pensar no sentido de peregrinar, que aqui também nos remete ao esforço resistente e revolucionário do deslocamento diaspórico. Peregrinar também sugere, afinal, a busca por algo, pelo resgate de valores originários entrelaçados pela necessidade de novos caminhos. A busca do novo, não pela certeza do que virá, mas pelo que se abstém: tirania, manipulação e controle.
A liberdade, nessa jornada, parece menos romântica e mais longínqua e abstrata. Ela exige que sua existência comece no desejo, para, só assim, apresentar-se como essência palpável. Ela, então, torna-se um direito a ser conquistado. Como alicerce a ser construído a partir de tentativas, frustrações e vitórias. Vitória, frustrações e tentativas.
Liberdade esta que se torna real pelo caminho e não pela chegada. Liberdade que se apresenta a partir de uma decisão.
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