É preciso ir pessoalmente a uma ruína para perceber nela sua própria materialidade, sua condição física, arquitetônica, seu entorno espacial, seu lugar enquanto geografia no mundo. Nesse sentido, a ocupação na Ilha da Pólvora (localizada no extremo oeste da Baía de Vitória) intitulada <<não sair até o rojão estourar>> é uma proposta que provoca nosso inconsciente coletivo sobre as noções de ruína para além dos usos que fazemos habitualmente desse substantivo.
O projeto que tem concepção e direção artística da pesquisadora Clara Pignaton propõe um deslocamento não apenas simbólico, mas físico às ruínas do antigo Hospital Oswaldo Monteiro, um espaço para tratamento de hanseníase e tuberculose que funcionou de 1925 até os anos de 1990. “Remontar a história dessa ruína foi um quebra-cabeça, inconcluso, mas nela queremos inserir presenças - como a do artista Marcus Vinicius - e fazer um elogio a temporalidade geológica da natureza” explica a idealizadora do projeto.
Assim, essa instauração sugere vermos o espaço pela perspectiva da experiência estética, reunindo trabalhos dos artistas Bruno Zorzal, Bárbara Bragato, Elisabete Finger, Fredone Fone, Luisa Lemgruber, Natan Dias, Raquel Garbelotti, Rubiane Maia, Thais Graciotti e Marcus Vinícius. “Todos os artistas, cada um à sua maneira, compartilham de alguma das questões que aquele território me suscitou: pensar a paisagem e a memória, a natureza e a materialidade, pensar a cidade. Daí partiu o diálogo e escolha dos artistas”, pontuou Clara.
Diante do jogo entre natureza e cultura, a proposição nos põe diante de um vir a ser fragmentado, e frente aos trabalhos percebemos mais a falta do que a sobra; somos então convidados a ver como presença aquilo que parece sustentar-se por sua ausência. Das proposições, o trabalho de Marcus Vinicius [1985-2012], se materializa ali como um acelerador de partículas. Realizado anos atrás na própria ilha, MV criou uma vídeo-performance constituindo um espaço de imantação pela evocação ritualística de um círculo de pólvora, onde seu corpo nu assentado no centro é tomado pela fumaça.
Há um segundo trabalho, Áxis, esse de Thais Graciotti, que lida também com a forma do círculo, e entre natureza e cultura parece-nos evocar um culto à matéria.
De dentro para fora, nos chama a atenção igualmente o uso do ferro feito por Natan Dias e Fredone Fone. Com suas dobraduras férreas, Dias remete-nos à memória do ideário concretista brasileiro enquanto em Alice, de Fredone, temos duas situações: uma de ordem discursiva e a outra de caráter visual. Esse artista entende a ruína como um canteiro de obras para instalar em um dos cômodos do último andar de uma das alas finais da edificação, uma escada de ferro helicoidal que funda e nos leva para um mirante.
Porém, tal gesto de contemplação do mais alto ver completa-se com um mal-estar de sua parte escrita quando o artista relata em um texto as especificidades de montar tal escada na ala feminina, narrando-nos no fim do escrito a história por anos velada de Alice Ball, a química norte-americana que desenvolveu o único tratamento efetivo contra a lepra até a aparição dos antibióticos, em 1940, uma das muitas vozes negras silenciadas por anos por poderosos homens brancos.
Essa intervenção, de certa forma, dialoga com a instalação proposta por Rubiane Maia que ocupa a extensão de toda fachada de um dos prédios do hospital. Ao alocar uma série de bandeiras com inúmeras mãos negras impressas, a obra Sinais materializa uma das imagens mais poderosas de força e afetividade.
Em um diálogo direto com as ruínas, Raquel Gaberlotti apresenta em Invasoras um inventário sobre a vida presente nas frestas, nos cantos e restos de paredes ao catalogar uma variedade de plantas que tomam conta de toda a edificação. Uma virada da natureza em tempos de intempéries climáticas.
Entrecruzando histórias de fantasmas, escassas memórias, fotos, registros e vestígios do lugar, a instalação de Bruno Zorzal traz de modo fantasmático desenhos meio fotográficos de rostos realizados de forma negativa, pela subtração do lodo incrustado nas paredes de um longo corredor a céu aberto.
No fim, os trabalhos parecem nos dizer que o que está ali, não está completamente ali, pois falam justamente dessa lacuna entre a intenção e sua realização, sobre o que se quer realizar e aquilo que deu para ser feito em matéria de aparição. “As ruínas deflagram as falhas do nosso processo civilizatório e nos colocam a ver o progresso histórico também como destruição, por isso mesmo falam mais do que pretendemos ser do que uma fórmula ideal que repetimos para nos representar” argumenta Clara Pignaton em entrevista.
Em suma, diante de um atual pandêmico e um devir-morte para um vírus que a ciência luta para combater e vencer a cada dia, essa exposição é certamente a mostra mais audaciosa realizada em território capixaba nos últimos anos.
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A exposição está com agendamento esgotado.
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