Apesar de oficialmente a Igreja Católica guardar o 26 de setembro para os Santos Cosme e Damião, o calendário popular os comemora no dia 27. Existe uma tradição amplamente difundida no Brasil, e em algumas outras partes do mundo, que consiste em colocar um pratinho de doce no canto da casa como homenagem aos gêmeos e distribuir sacolinhas com balas para as crianças. O ritual, meio católico, meio africano, tem o objetivo de renovar as boas energias, dar sorte, garantir saúde e, claro, alegrar a criançada.
Na casa de minha família, uma roça de Omolocô – religiosidade de matrizes afro-indígena e católica – o pratinho de Cosme e Damião era farto de suspiro, maria-mole, pé-de-moleque e bala de coco. Considerando que o conteúdo era de grande interesse das crianças, e que, ao contrário dos gêmeos canonizados, as danadas pouco tinham de santas, o prato estava fadado ao furto.
Segundo a hagiologia (a ciência dos Santos!), São Cosme e São Damião nasceram em algum lugar da Ásia Menor, estudaram medicina na Síria e se popularizaram oferecendo tratamentos gratuitos como exercício do seu apostolado, especialmente para velhos e crianças. Os milagres atribuídos aos dois dizem respeito à capacidade de cura da dupla e legaram aos irmãos o posto de padroeiros dos cirurgiões.
Não consta, pois, que Cosme e Damião sejam crianças na tradição católica. Os santos gêmeos rejuvenesceram quando a cultura cristã encontrou nas cozinhas e senzalas do Brasil as tradições africanas, sobretudo as de origem iorubana.
O povo iorubá tem sua origem na Nigéria e no Benim e aportou no Brasil na condição de escravizado no séc. XIX. O navio negreiro que trouxe o escravizado africano não transportou sua comida, não transportou suas roupas, não se encarregou dos seus bens; ao contrário, a instituição escravista destituiu o africano até do nome. Mas as formas de permanência das culturas africanas foram diferentes e difusas, floresceram na formulação de uma língua brasileira, de uma culinária, de uma música e de uma religiosidade.
Por essas e por outras, assim como o candomblé, que apesar de ter suas raízes fincadas no solo africano, está atravessado por inúmeras práticas-rituais católicas, também o catolicismo brasileiro não ficou imune aos fluxos culturais afro-indígenas. A religiosidade africana transformou os festejos de São Cosme e São Damião e incluiu outras figuras no panteão, como o irmão mais novo: Doum.
Entre os iorubanos, quando nascem filhos gêmeos, o pai se encarrega de consultar Ifá (o oráculo) para se informar sobre a destinação das crianças, as obrigações religiosas que elas terão e suas proibições – alimentares, por exemplo; a mãe, por sua vez, sai de casa em casa, com os gêmeos amarrados em um pano chamado ojá ao redor do corpo, dançando e pedindo donativos.
Ainda que a família não necessite desses donativos, a esmola é uma tradição que deve ser respeitada porque leva e traz a sorte. Aos doadores, responde-se com a expressão Ibeji n`ki ó (Os gêmeos saúdam você).
“Ibejis”, no plural, é uma referência aos gêmeos, mas “Ibeji”, no singular, diz respeito ao orixá que zela pelos irmãos. Há uma diferença, apesar dela nem sempre ser lembrada no Brasil. No conjunto de histórias orais e mitos iorubanos, há pelo menos uma história que explica a sorte atribuída às crianças gêmeas. Conta-se que Iku (a Morte) andava pela Terra a fim de amedrontar os vivos.
E foram justamente os gêmeos que conseguiram afastá-la. Segundo o mito, a dupla se alternou tocando atabaque, fazendo com que Iku dançasse incontrolável e exaustivamente. Iku implorou aos irmãos que parassem de tocar aquela música e eles propuseram um acordo: silenciaram os tambores e a Morte deixou aquelas pessoas em paz. Os gêmeos se tornaram, a partir de então, símbolo da sorte e da prosperidade.
Na cultura iorubana tradicional, alguns nomes próprios são atribuídos em função da circunstância do nascimento. A palavra amutorunwa significa “a criança traz um nome quando nasce” e resume esse fator onomástico. O primeiro filho gêmeo a nascer se chama Taiwo, que significa “o que provou primeiro o mundo”, o segundo filho chama Kehinde, “o que vem atrás” – os nomes independem do sexo.
É curioso que Kehinde será considerado o filho mais velho. O filho da próxima gestação será obrigatoriamente chamado de Idowu. Há uma ideia corrente de que a mãe que não tiver o Idowu, ou seja, um filho depois da gestação dos gêmeos, ficará louca porque Idowu subirá à sua cabeça. Esse costume tem relação com o fundamento do candomblé de cultuar Idowu toda vez que se cultua o orixá Ibeji. Mas isso é outro papo.
Doum, corruptela de Idowu, o irmão de Cosme e Damião na tradição afro-católica brasileira, é o irmão mais novo dos ibejis Taiwo e Kehinde. E assim as coisas vão se misturando. Por apresentar algumas características que o aproximam do orixá Exú – a traquinagem, por exemplo –, Doum é tido por alguns ritos religiosos como seu filho ou como o próprio Exú em sua versão criança. Há um refrão muito cantado nas rodas de samba e nas giras de umbanda que exemplifica o caráter brincalhão de Doum ao raptar o cavalo do Orixá Guerreiro: “Cosme, Damião / O Damião, cadê Doum? / Doum tá passeando no cavalo de Ogum”.
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Essas não são as únicas crianças do panteão religioso brasileiro, Alaba, Idogbê, Crispim e Crispiniano ainda figuram nesse altar infanto-juvenil, mas isso é papo para outro momento. Em alguns lugares, festeja-se os ibejis com os doces; em outros, a exemplo da Bahia, com caruru e ecuru – uma massa feita de feijão fradinho ralado com cebola e enrolado na folha de bananeira
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