Tem coisas que te põem num instantâneo e gelado satori. Por exemplo: escapar da morte por um triz ou saber da morte de alguém a quem se tem, de uma forma ou de outra, o coração atado. Com um curto intervalo de horas, essas duas me aconteceram, uma vez, em Vitória, mal desembarquei do avião.
A primeira foi quando eu atravessava uma outrora pacata avenida e quase fui atropelada por um veículo saído de um escancarado portão. Ao volante, uma jovem que freou lá na frente, guinchando os pneus. Nem meu pulo aterrorizado, nem minha face lívida, nem a solidariedade de alguns circunstantes para com a quase vítima convenceram a adorável motorista que ela não vinha tão devagarinho quanto argumentava.
A segunda, bem mais cruel, foi quando me disseram, meio à queima-roupa, que Guilherme Santos Neves havia morrido. Fiquei muda. Por um exato silencioso segundo, revivi o último dia em que o encontrei, na livraria Logos, com Renato Pacheco, num sábado pela manhã. Faz tempo. Ele estava mais magro e uma lenta tristeza boiava, aqui e ali, em sua fala.
Porém, de repente, saiu-se comum trocadilho à Mallarmé, e pensei ter visto uma chispa de luz em seu rosto, o que me trouxe de volta (ainda que tenha sido um fragmento de minha imaginação) o clima daqueles caros dias em que ele – o capixaba mais culto, a mente mais lúcida, o intelectual admiravelmente mais generoso para com os principiantes nas escaramuças da literatura que estas indiferentes plagas do nosso Estado já viram – dava aulas no Colégio do Carmo e eu era sua aluna.
O tempo resvala no cristal do relógio, mas ninguém que tenha conhecido o Professor Guilherme, o nosso amado Guigui como nós as suas alunas, longe de suas aguçadas vistas, o chamávamos, ninguém mesmo poderá esquecer o seu pensamento aguçado por uma sutileza a mais elegante; ninguém, em sã consciência, jamais poderá esquecer aquela sua vigorosa e contagiante paixão pela vida.
A existência transita. A gente muda e se muda. A cidade muda, também. No entanto, há pequeninas lascas de cada um de nós que permanecem agarradas entre os muros, as casas, as ruas, as praças, as sebes e os espinhos desta Cidade-Ilha. É o que acontece com a memória que guardo de meu mestre e que nenhuma troca de casca desta nossa condição humana, ainda que mortal, vai poder arrancar.
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30 anos sem Guilherme Santos Neves: Mesa-redonda com Bernadette Lyra e Fernando Achiamé, na próxima quarta, 13, às 17h, na sede do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Av. República, 374 - Centro, Vitória. Entrada gratuita.
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