Todos os dias Margareth Dalcolmo sai de seu apartamento, na zona sul do Rio de Janeiro, em direção a Jacarepaguá, zona oeste da cidade. É lá, no campus da Fiocruz, que a pneumologista faz uma trabalho árduo no combate e tratamento da tuberculose, doença que atinge 70 mil brasileiros e mata 4.500 pessoas a cada ano. “É um grande desafio porque esses pacientes configuram um grande grupo de risco. É uma das grandes preocupações neste momento”, alerta ela.
Desde que a pandemia do coronavírus chegou ao Brasil, a capixaba se tornou uma das profissionais mais requisitadas pelas emissoras de televisão, onde tem a missão de esclarecer para o público as principais dúvidas referente à Covid-19. Há três semanas ela aparece quase que diariamente na tela da TV, falando sobre o vírus para todo o país. Ela se divide entre seu serviço e a clientela privada de seu consultório. Além de consultorias à África subsariana onde trabalha num projeto do Banco Mundial para doenças respiratórias e mineração.
Primogênita de três irmãs de uma família de juristas com formação muito católica, ela nasceu em Colatina, onde viviam seus pais e a avó materna. Aos dois anos de idade se mudou com a família para o Rio de Janeiro, onde cresceu no Bairro de Laranjeiras. “Sempre fui uma leitora voraz, desde muito menina. E me divertia sendo das primeiras alunas de classe”, lembra.
Se formou médica, tornando-se um dos principais nomes da pneumologia no país. Casada com o professor e imortal Candido Mendes da Academia Brasileira de Letras, que dá nome à universidade Candido Mendes, ela costuma vir a Vitória para visitar as irmãs e os sobrinhos. Os pais são falecidos. “Somos muito unidas. Meu pai conseguiu fazer uma relação inquebrantável como irmãs. Nos vemos com muita frequência. E tenho quatro sobrinhos que são meus afilhados e é como se fossem meus filhos, já que não fui mãe”. Mesmo trabalhando muitas horas por dia e se dedicando arduamente na luta contra a pandemia do coronavírus, doutora Margareth arrumou um tempo pra conversar por telefone com a Revista.ag, onde relembrou sua trajetória e falou do atual momento.
Tem algum médico na família ou alguém apaixonado por medicina?
Minha família não tem tradição médica, é majoritariamente de juristas e advogados. Até adolescência eu era leitora voraz, dizia convicta, e me preparei para cursar Diplomacia, com a anuência de meus pais. E ao final da adolescência estava com proficiência em inglês, francês e espanhol. Inclusive cursei o clássico, que era à época direcionado às ciências humanas. Era um período difícil do Brasil, durante a ditadura militar e, numa madura reflexão, aos 17 anos, para a surpresa de meus pais, eu decidi que seria médica. Jamais tive nenhuma hesitação ou arrependimento, entendendo desde o início que a medicina e as humanidades precisam andar de mãos dadas. Um médico português do início dos século passado, Abel Salazar, dizia " Médico que só sabe medicina, nem medicina sabe".
E como você foi parar na faculdade de medicina?
Ao final da minha adolescência, já no ano de preparo para o vestibular, meus pais, por interesse de trabalho de meu pai, que era advogado, decidiram ir morar em Vitória. Não conhecia quase ninguém na cidade, apenas a família, e desse período fiz caras amizades capixabas, que preservo até hoje, com muito afeto. Fiz o ano de cursinho e trocava ensinamentos com meus contemporâneos: eles me ensinavam física e química e eu lhes ajudava nas demais matérias. Assim entrei na Emescam, onde ganhei excelentes colegas e amigos, com quem - uns mais outros menos, porque assim é a vida - mantenho relações sempre.
Por que escolheu a Pneumologia?
Ao iniciar as cadeiras clínicas na Santa Casa e chegar à Pneumologia, já lera a Montanha Mágica, obra seminal de Thomas Mann, tive a felicidade de ter como chefe de serviço o saudoso professor José Luiz Loureiro Martins, que me estimulou e influenciou, e com quem estabeleci uma frutuosa relação de amizade, até sua morte precoce. A partir daí pude conhecer figuras capixabas exemplares, como os professores José Moyses e Jayme dos Santos Neves .
Durante todos esses anos, alguma história na medicina te marcou? Qual?
Tenho momentos que considero transcendentes em minha formação, desde minha primeira experiência como jovem médica trabalhando numa periferia do Rio de Janeiro, onde pude viver os contrastes sociais que marcam o nosso país. Já nos anos 80 tive a chance de participar da luta contra o tabagismo no Brasil com o grande pneumologista Jayme dos Santos Neves, que marcou a minha trajetória e de quem fiquei amiga.
Margareth Dalcolmo
Pneumologista
"Tenho momentos que considero transcendentes em minha formação. Trabalhando numa periferia pude viver os contrastes sociais que marcam o país"
E a relação com o paciente?
Experimentei as relações no convívio entre a vida e a morte, depoimentos com pacientes terminais que me marcaram muito como médica.
Me conte do seu encontro com a substituta da Madre Teresa de Calcutá...
Nos últimos anos tive a oportunidade de estar tête-à-tête com a irmã Nirmala Joshi, substituta da Madre Teresa de Calcutá. Estava na Índia a trabalho e resolvi alongar a viagem, queria ter esse encontro e conhecer o legado da Madre. Um professor conseguiu para mim esse encontro privado. Visitei sua casa em Calcutá e ali entendi o que é generosidade humana na maior das adversidades e exclusão social. Um mulher de formação em Ciências Sociais. Lembro de perguntar: ‘Como sabe tantas coisas?”. Ela me contou que Teresa era muito exigente e que tinha que conhecer para saber se estava no caminho certo. Jamais esquecerei esse encontro.
A senhora é médica, pesquisadora... Já sofreu preconceito por ser mulher?
Não que tenha sofrido preconceito escancarado, mas sutis sem dúvida. Tudo que conquistei é resultado de muito esforço e nenhum privilégio.
Qual é o seu trabalho na Fiocruz?
Sou médica clínica e pneumologista. Dou aula e trabalho num serviço de referência no Rio de Janeiro, num dos campus da Fiocruz, que fica em Jacarepaguá. Lá cuidamos de pacientes com casos complexos de tuberculose.
A tuberculose é pouco falada no Brasil. Ainda causa mortes?
É muito menos falada do que deveria. A tuberculose atinge 70 mil brasileiros a cada ano e mata 4.500 pessoas por ano. É um grande desafio porque esses pacientes configuram um grande grupo de risco. É uma das grandes preocupações. Quando a gente entra na periferia, a situação piora ainda mais. Da mesma maneira que acontece no sistema prisional. É uma centena de vezes mais que a média aqui fora.
Álbum de família
Estamos na terceira semana do isolamento social. O que sabemos do Coronavírus?
Sabemos que estamos diante de um novo vírus e é muito mais letal do que a gripe comum. Ele sofreu mutação, passou dos animais para o homem. É um vírus altamente mutante e que já se adaptou ao Brasil.
Como é a doença?
É uma doença respiratória. Por isso que estamos tão compromissados com o tratamento e a prevenção. Em 80% são casos leves e em 20% são graves que exigem internação. Dessa metade os pacientes vão evoluir precisando de internação na UTI.
E qual é a evolução dos casos graves?
Pode ser muito grave, inclusive fatal. Uma mortalidade muito alta sobretudo com relação a pacientes mais velhos, como ocorre na Itália e Espanha. A nossa população não é de proporção de idosos tão alta, temos muitos jovens. É preciso ficar atento, pois vai se disseminar nas comunidades periféricas onde a população é jovem.
Qual o risco Brasil para a Covid-19?
Nesse momento a disponibilidade de respiradores e de força de trabalho qualificada. Muitos médicos e enfermeiros estão doentes e internados. Cerca de 20% dos casos em Portugal são de profissionais de saúde. É preciso prover equipamentos de proteção individual. Sou defensora do uso de máscaras desde o início. Que todo mundo use máscara ao sair de casa. É o risco de um grande impacto social, humanitário e econômico. Não será diferente do resto do mundo.
Margareth Dalcolmo
Pneumologista
"Sou defensora do uso das máscaras desde o início. Que todo mundo use máscara ao sair"
O que podemos fazer hoje?
O Governo, através do Ministro da Saúde, está fazendo sua parte ao defender o isolamento social. Tem que ser radical nas próximas duas, três semanas. Não termos outras armas contra esse vírus. Além de diagnosticar e testar o maior número de pessoas. Os dados são subestimados porque estamos testando pouca gente. Também estamos vendo empresas privadas modificando suas produções e fabricando álcool gel e provendo para as comunidades mas pobres. É o momento que o Brasil deve reconhecer sua grande concentração de renda e ser generoso.
Esse é um momento histórico para a ciência, mas o que ele representa na prática?
É um momento histórico e o mundo não estava preparado para a pandemia. Não será a última, outras epidemias virão. A ciência, o mundo e as estruturas governamentais terão que sair do grande impacto humanitário e do número de mortes, e sair com grandeza.
Você se tornou uma fonte importante nos telejornais da TV Globo. Como surgiu o convite? Teve alguma repercussão?
Tenho muitos clientes na emissora que me conhecem. Tenho trabalhado pelo menos duas horas a mais do que o normal todos os dias. Cabe aos médicos e professores serem muito transparentes em prover a informação. É muito importante ter alguém que fale a verdade e não cause pânico para tirar as dúvidas das pessoas e da grande imprensa. O assédio não me assusta, as pessoas são muito respeitosas.
E o que te move, qual é a sua fé pessoal?
O enorme compromisso com a medicina e a certeza que podemos passar por uma adversidade e sair melhor do que entramos. Não é fé de natureza religiosa, mas científica, uma esperança no homem.
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