Escrever é a grande paixão da publicitária mineira Flávia Campos. Desde criança. Tanto que ela também se tornou escritora e em 2008 criou o blog “Epifanias e equívocos” para registrar sentimentos, filmes, livros, poemas... Manteve a frequência dos posts nessa plataforma até 2012, mas depois disso viveu uma temporada em que deixou de compartilhar seus textos por medo das críticas. “Voltei para dentro de mim. Escondi meus escritos por medo das críticas, pela síndrome da impostora que não me dava um segundo de paz, e por todas essas coisas que nos fazem crer que devemos agradar os outros, viver para os outros, morrer pelos outros. Eu já fui esta pessoa”, revela.
Mas mesmo nesse momento ela nunca deixou de escrever. “Eu precisava registrar o que me calava, o que me tocava, os sentimentos que me traziam paz e tantos outros que me consumiam numa guerra interminável pela busca de quem eu era. Essa coisa existencialista pode ser perigosa. Mas mesmo sabendo disso, continuo a minha busca pelo sentido da vida.”
Vida essa que surpreende quando menos se espera. E foi exatamente isso o que aconteceu com Flavia, em 2012. Ela estava grávida e Theo, seu filho, decidiu antecipar sua chegada. “Precisei fazer uma cesariana logo após um exame de rotina na trigésima quarta semana de gestação”, lembra a escritora. Resultado: ela e o bebê ficaram 10 dias na UTI e quando, enfim, chegaram em casa ela desmoronou. Ele pesava menos de dois quilos e a depressão pós-parto veio e se instalou.
Passadas várias turbulências, que vieram com o nascimento do filho e a depressão, e que duraram alguns anos, nasceu o instagram @PalavraNuaFlaviaCampos e o projeto #TodoMundoéPoesia em que mulheres do Brasil todo enviam suas histórias e a escritora as transforma em poemas. “As poucas pessoas que me seguiam, a maioria mulheres amigas e conhecidas, começaram a se identificar muito com a potência dos meus poemas. Então decidi tornar o perfil público. Eu queria ajudar mais mulheres a vencer seus medos”. O projeto virou o livro “Coragem, substantivo feminino”, no qual compartilha vários desses poemas, além de parte de suas próprias histórias, vivências e emoções, afim de encorajar o público feminino. Conheça mais da trajetória e do trabalho da escritora na entrevista:
A sua paixão pela escrita sempre esteve presente ou algum momento da sua vida marcou o surgimento desse interesse?
Tenho paixão pelas palavras. Por poder fazê-las valsar diante dos meus olhos. Escrevo desde criança. Escrevia bilhetes e poemas para presentear meus pais. Escrevia para confortar as pessoas em seus momentos de tristeza e para celebrar com elas seus dias de alegria. Gosto da palavra simples, da palavra que inclui. Prefiro escrever para o coração de quem me lê. E o coração, gosta da simplicidade. Eu sempre digo que escrevo, porque viver não basta. É preciso emocionar-se, se deixar encantar. Palavras nos fazem sonhar.
O que te impulsionou a começar o projeto #TodoMundoÉPoesia?
Quando criei meu perfil de poesia no instagram - @palavranuaflaviacampos - muitas pessoas, sobretudo mulheres, me enviavam mensagens dizendo que parecia que aquilo havia sido escrito sob medida para elas. Que eu lia mentes, almas, sentimentos. Sou publicitária estrategista e estudo muito o comportamento humano. Gosto de ouvir, de observar, de me aprofundar naquilo que o outro sente. Então percebi que mesmo sendo tão diferentes, a maioria de nós temos enfrentamentos parecidos. Fomos criadas numa sociedade cujas regras vieram do patriarcado. Isso nos levou viver silenciosamente dentro do mundo machista, misógino e, muitas vezes, violento demais para mulheres. Foi então que decidi criar o projeto. Fiz um post no meu feed e, em um mês, eu tinha mais 300 histórias de vida que mulheres que nunca vi tiveram a generosidade de compartilhar comigo. Transformei cada uma num poema, sempre tentando trazer a coragem delas à tona. As histórias eram um misto de felicidade e tristeza, de perdas e conquistas. Eu nunca cobrei por isso. Eu tinha as palavras para ajudar essas mulheres. Elas tinham suas histórias para me inspirar. Tudo é sobre empatia e sororidade.
De onde surgiu a ideia de ressignificar histórias transformando-as em poemas?
Vejo pedaços de mim nelas. Às vezes fico devastada. Eu não sou psicóloga, não posso resolver o problema delas. Mas nunca faço um poema sem dizer que elas podem buscar redes de apoio para curarem suas feridas e retomarem suas vidas. Indico ONG’s, perfis que lutam pelos direitos das mulheres, caminhos para que encontrem ajuda profissional. Eu me envolvo com as histórias. Não consigo fazer de outra forma. Sinto dor, alegria, raiva, esperança. Mas quando elas me mandam o depoimento dos poemas, tudo faz sentido e vale a pena.
Quais dessas histórias chegou a te marcar mais ou impactaram de forma mais forte nessa trajetória?
Muitas histórias me marcaram. Mas posso citar a de uma mulher trans que se apaixonou por um homem que também a amava muito. Mas ela disse que jamais ficariam juntos porque ele não tinha coragem de assumir o relacionamento. Ela dizia que o que mais doía era a sensação de estar pra sempre aprisionada num gênero que não é o dela.
Também me emocionei com a história de uma mulher que, ainda menina, foi violentada pelo padrasto e a mãe nunca acreditou. Ela foi morar com a avó. Depois de adulta encontrou um homem por quem se apaixonou e com quem teve uma filha. Mas não conseguia se soltar. O sexo era uma obrigação. Começaram a terapia. Ele não sabia dos estupros. Ela teve que lidar com tudo de novo. Estava no meio desse reencontro com ela mesma e o companheiro estava ao lado dela.
E teve ainda uma ex-modelo que disse que sempre foi muito bonita, desejada, mas nunca se casou. Estava envelhecendo. Encontrou um cara que parecia muito legal num aplicativo de relacionamento. Marcaram um encontro na cidade dele há 200 km de Porto Alegre. Ela foi de ônibus. Disse que tinha certeza que havia encontrado o amor. Chegando lá, ela desceu do ônibus e quando ele olhou pra ela disse que tinha se enganado sobre o que sentia. Ela entrou no primeiro ônibus de volta se sentindo pela metade. Em todas essas histórias e muitas outras, como a de mães que perderam filhos, eu devolvi um poema com um olhar generoso. Tem muitas outras. Elas se entrelaçam.
E a história do seu filho? Como mexeu com você?
Foi em 2012, um ano incrível até então incrível pra gente. Eu e meu companheiro decidimos ter um filho e tudo correu conforme planejado. Aquilo me fez acreditar que eu tinha o controle da vida, que os planos seriam consumados e que tudo daria certo. Acontece que não temos o controle de quase nada. Theo decidiu antecipar sua chegada, precisei fazer uma cesariana logo após um exame de rotina na trigésima quarta semana de gestação. Depois disso tudo mudou.
E o que ele tinha?
Tratava-se de uma infecção desconhecida, de uma perda de líquido repentina e o bebê estava em situação de sofrimento no útero. Marcaram a cesariana para o dia seguinte e passei a noite escrevendo sem conseguir dormir. Theo nasceu e foi para a Unidade de Tratamento Intensivo. No final do dia, me levaram até ele para que eu o amamentasse e assinasse uma autorização de transfusão sanguínea. Ele estava com um quadro gravíssimo de anemia e eu também. Passamos 10 dias internados. Ele na UTI e eu naquele quarto que tinha ares de uma floresta fechada onde o sol nunca entrava e saídas não existiam.
Como foi as consequências disso pra você?
Quando entrei com meu filho em casa, eu desabei. Ele pesava menos de dois quilos quando saiu do hospital. Eu me perdi de quem era e não sabia quem eu me tornaria. A depressão pós-parto veio e se instalou, tornando-se crônica. Quando voltei da licença, tudo tinha mudado. Fui demitida. Virei uma estatística. Tive medo, raiva e desesperança. Não foi fácil. Não fui uma heroína, me senti vítima de várias situações e pessoas. Me enfraqueci. As coisas só começaram a entrar em ordem novamente quando o Theo fez oito meses. Havia conseguido me recolocar no mercado de trabalho, o tratamento da depressão estava indo bem, a terapia me ajudava muito, mas eu não me achava. Me perdi da mulher, não sentia desejo, me afastei do meu companheiro, dos meus amigos e da vida social. Eu vivia unicamente para o meu filho e meu trabalho.
Nesse período você parou de escrever?
Isso durou de 2013 até o começo de 2016. Nunca parei de escrever, mas algumas coisas até hoje eu prefiro não ler. Tenho medo de reabrir feridas. Quando me reencontrei - bem diferente de quem eu era - tomei uma decisão: usar meu lugar de fala e minha história de vida, para fazer meu papel pela igualdade de gênero, pela diversidade e por uma mundo menos machista e patriarcal. No trabalho abracei a causa e na poesia deixei isso muito claro.
Em que momento você considerou que seria interessante unir essas histórias em um único livro? Como foi o processo de criação do livro “Coragem, substantivo feminino”?
O livro foi consequência dos acontecimentos que tanto me transformaram. Tudo aquilo precisava ter vasão. Tive medo de publicá-lo, mas publiquei para não ter medo. Ele carrega minhas crenças, minhas ideologias. Ele carrega minha alma e também um pedacinho da alma de tantas mulheres que me contam suas histórias e que me leem. Acredito que quando estamos dentro de uma história, da nossa história, tendemos a enxergá-la por um único ângulo. A poesia abre possibilidades infinitas de olhar para aquilo de outros jeitos. De contar uma mesma história de formas distintas. Sabe por quê? Porque a poesia é maior que o medo. A única certeza que eu tinha é que meu maior desejo era fazer aquelas palavras valsaram também diante de muitos outros olhos.
Você faz um trabalho muito forte voltado para o público feminino no Instagram, onde compartilha, conteúdos de inspiração, trechos do livro. Mas nem sempre foi assim. Quando você se sentiu pronta pra tornar o perfil público e alcançar mais gente?
No início eu tive medo do julgamento, da síndrome da impostora, de ser um fiasco. Meu perfil era fechado, mas quando mais as poucas mulheres que me liam se diziam conectadas com minha escrita, mais ajuda eu recebia delas. Foi a nossa ciranda, foi a sororidade, a força do sagrado feminino pulsando e dizendo: siga. Então me senti pronta. Em dois anos, ganhei quase 57 mil seguidores. 95% são mulheres espalhadas pelo Brasil inteiro. O engajamento é altíssimo. O trabalho me enche de alegria. Eu aprendo todos os dias com as minhas seguidoras.
Por lá (no Instagram), como é a recepção do público em relação a estes conteúdos?
A recepção é linda. Eu sou uma mulher feminista, humanista, antifascista e que luta contra a homofobia. Já perdi muitos seguidores por isso e ganhei outros tantos. Acredito que devemos nos posicionar. Meu perfil diz a que veio. E isso tem sido lindo. A rede que se estabelece ali é maravilhosa e cheia de afeto. Não digo que é um perfil exclusivamente feminino, todos são bem-vindos. Mas preconceituosos e haters não duram muito tempo lá. Que sorte a minha!
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