Fabiano Contarato, 55 anos, não esquece. Depois de muitos anos, ele ficou uma noite sem dormir. Foi no dia 16 de março de 2017, quando encontrou, pela primeira vez, o filho Gabriel e se tornou pai. Era muita emoção para um único dia. "Nunca tinha trocado fralda e nem feito mamadeira, interfonei para o síndico do prédio, que tinha um bebê, e pedi ajuda. Já quando estávamos na minha cama, fiquei vigiando com medo dele morrer por asfixia por conta do edredom", conta.
O capixaba nascido em 22 de junho de 1966, sob o signo de gêmeos, viveu no bairro Cristóvão Colombo, em Vila Velha, numa tradicional família católica. Um dos seis filhos de uma dona de casa e de um motorista de ônibus, Contarato foi um aluno exemplar. Frequentador assíduo da igreja, cresceu ouvindo a clássica pergunta: ‘Cadê a namorada?’.
Formado em Direito, Fabiano fez carreira na polícia e só aos 26 anos teve coragem de se relacionar com outro homem. "Durante toda minha vida mergulhei no estudo. É como que para ser 'aceito', eu tinha que ser o melhor. Passei em primeiro lugar no concurso para delegado. Mas sempre ouvia: 'o Contarato é muito inteligente, mas ele é gay'. É como se eu sentisse uma facada no peito".
Senador eleito pelo Espírito Santo, é dono de uma conhecida trajetória: venceu a pobreza, tornou-se um professor universitário e delegado respeitado. Casou-se com o fisioterapeuta Rodrigo Grobério e se tornou pai de Gabriel, 7 anos, e Marina, de dois. A pequena foi adotada em plena pandemia.
Em uma longa conversa por telefone na última segunda-feira (2 de agosto), de Brasília, ele lembrou das dificuldades, dos preconceitos enfrentados e do sonho em ser pai que acabou sendo realizado duplamente.
Gabriel, seu filho mais velho, nasceu para você no dia 16 de março de 2017. Que lembranças têm desse dia?
Estava dirigindo quando meu telefone tocou e era do abrigo da Serra, dizendo ter uma criança disponível para a adoção. A ligação fez tremer minha perna. Parei o carro e disse: 'é meu filho'. No outro dia, na hora do almoço fui conhecê-lo, nunca tínhamos nos visto. Era uma casa em que cheguei no portão e comecei a chamar. Do lado de dentro, tinha uma porta de vidro com um pedaço quebrado na parte inferior, e tinha um garotinho colocando a cabeça nesse buraco. Era o Gabriel. Ele ficou muito arredio no início, é muito difícil para a criança. Fico pensando: cada aniversário ali dentro, em vez de alegria, passa a ser um momento de dor porque vai diminuindo as chaces dela ser adotada. Não existiu teste de adaptação, só aceitei e saí com o meu filho e o termo de guarda. Ele tinha dois anos e oito meses, agora está com sete. Foi marcante esse dia na minha vida. Ele chegou e transformou ela.
Foi longa essa espera?
Não demorei na fila de adoção porque não fiz exigências. Eu tinha (e tenho) amor para dar. Então, o meu filho viria independente de sexo, da cor da pele ou da origem. Lembro que, quando preenchi o cadastro, disse que poderia ter deficiência leve ou algum vírus, como o HIV, por exemplo. Quando você não faz definições, o procedimento de adoção é um pouco mais rápido.
Foi naquele dia que você se tornou pai ou o processo aconteceu ao longo dos anos?
Naquele exato momento do encontro, eu nasci como pai. Quando chegamos em casa e ele foi dormir, na minha cama, não consegui fechar os olhos. Fiquei olhando para a barriga dele preocupado, para ver se ele estava respirando. Ficava com medo dele morrer por asfixia por conta do edredom. Tudo, até então, era um processo teórico. Naquele dia, me tornei pai na prática. Foi transformador e hoje vejo o mundo totalmente diferente. Sou mais sensível, humano e mais compreensivo. Estava separado de Rodrigo e ele passou a ir todos os dias na minha casa. Gabriel foi o elo que fez com que nós voltássemos. Casamos e foi difícil depois.
Por quê?
Tive que entrar com o processo de dupla paternidade, porque Gabriel só estava com o meu nome registrado. Foi um momento difícil porque o promotor da Vara da Infância negou, falando que filho no Brasil só se fosse fruto de uma relação heterossexual e filho tinha que ter mãe e pai. Não poderia ter filho de dois pais e, pior ainda, filho de duas mães. Aquilo me ofendeu, e me ofende até hoje. A juíza foi contra ele e concedeu. Não satisfeito, (o promotor) recorreu, e isso me causou um transtorno porque já estava casado, Gabriel chamando o Rodrigo de papai e toda vez que vinha para Brasília tinha que autorizar o meu marido a ser responsável. Ainda bem que a juíza concedeu uma guarda compartilhada. Eu expus a minha família para que outras não sofram o que eu sofri. Foi um ato de preconceito latente.
E como a Mariana chega à vida de vocês?
Depois do Gabriel, eles perguntaram se queríamos sair do processo de adoção. Mariana chegou no dia 27 de novembro de 2020, durante a pandemia. Estava em Brasília quando me ligaram. Voltei para o Espírito Santo no outro dia e fui ao abrigo com o meu marido e meu filho para conhecê-la. Foi maravilhoso. Ela é uma menina totalmente diferente, despojada. Já ele é um anjo.
Cada criança tem a sua história. O sentimento ao recebê-los foi parecido ou diferente?
Foi parecido, mas com Mariana não tinha a insegurança que tive no início da paternidade. Me tornei um pai mais seguro. É como se relaxasse um pouco mais, já tinha um pouco mais de segurança.
Qual o aspecto mais difícil de ser pai?
Mais difícil é impor limites, falar não... Mas é necessário. Quero que eles tenham consciência do valor das coisas, que sejam empoderados em relação à cor da pele. Me preocupo porque, nem sempre, estarei ao lado deles. Sei que o Estado criminaliza pela cor da pele. Quero que não tenham relacionamentos com pessoas apenas de uma classe social. Não quero que se sintam diferentes, porque não são. Também tem o desafio de sermos pais gays, porque tem que explicar para eles. E ser pais brancos de crianças negras, como se deu isso, para que eles não se sintam rejeitados, e sim acolhidos.
Álbum de família
Seus filhos já sofreram preconceito por serem negros?
Já e nós presenciamos. Eu levei Gabriel num parquinho, na rua, aqui em Brasília, e todas as crianças eram brancas. Quando ele chegou, uma menininha perguntou se ele era menino de rua. Aquilo me cortou. Até hoje, quando falo, dá um nó na garganta. Primeiro porque é a reação de uma criança, não tinha como fazer alguma intervenção ali já que a criança reproduz o que ouve em casa. Mas doeu porque era meu filho que estava ali.
A luta antirracista também passou a ser sua?
Com certeza, ainda mais depois que meus filhos chegaram na minha vida. O Estado criminaliza a cor da pele, basta olhar os presídios para ver a população carcerária, que é de pobres e pretos. Filhos de pobres e negros não entram na universidade, principalmente nos cursos mais concorridos. O Brasil está longe do discurso de que somos todos iguais perante a lei. É um trabalho constante em todos os momentos e todos os espaços na busca da redução de desigualdade.
O senhor é o primeiro senador a assumir publicamente ser homossexual. Qual a importância disso para a população LGBTQIA+ brasileira, a seu ver?
É de extrema importância para ver que pode ocupar qualquer espaço. E quando está nesse espaço, você tem esse local de fala de forma muito mais contundente. Mas me questiono muito sobre essa igualdade. É fácil ser um senador gay, homem branco e cis, mas para a maioria não é assim. Muitos jovens são expulsos de casa por conta da orientação sexual, não têm oportunidade de estar na universidade, de ter emprego. A gente não vê travestis e transexuais com oportunidades de empregos. Quando temos negros, mulheres, pessoas com deficiência, índios, quilombolas, ocupando esses espaços, eles conseguem se ver ali e entender que podem fazer parte desse processo de ocupar qualquer espaço.
Quando você se reconheceu como gay?
Sempre me reconhei, mas não me permitia. Fui ter a minha primeira relação com homem aos 26 anos. Eu já era delegado e professor universitário. Antes não me permitia porque achava que não era certo. Ia para igreja, ajoelhava, rezava... Eu buscava ser aceito e não aceitava ter relacionamento. Eu mergulhava nos estudos. É como que para ser aceito, eu tinha que ser o melhor. Ouvi muito durante a vida: 'o Contarato é muito inteligente, mas ele é gay'. É como se eu sentisse uma facada no peito. O que tinha de errado comigo? A partir dos 26 anos, foi o início da libertação e o fim da culpa.
Você foi criado numa família católica...
Sempre participei da igreja, cresci nesse universo. Tinha aquela coisa de ser gay naquele contexto. É como se eu tivesse à margem, fazendo algo errado. Era um conflito até que me aceitei. Sou católico e hoje exerço a minha espiritualidade rezando o terços todos os dias. Quando posso, vou à missa.
Algum arrependimento na vida?
Tudo aconteceu no momento certo. Às vezes penso que poderia ter sido pai mais novo. Mas só agora tenho a maturidade e equilíbrio emocional ideal para a paternidade.
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