A maternidade deixou Camila Valadão sem roupa. A constatação ela teve a partir do momento que se tornou mãe de Francisco, há mais de um ano. "Desde que pari não tenho mais identidade com o vestuário do meu guarda-roupa, tenho preferido peças feitas com tecidos leves e que sejam confortáveis. Não quero mais calça apertada", conta. A conversa sobre moda surge quando pergunto se já escolheu o look para a posse de verdeadora. "Provavelmente vou usar algo com tecido africano, bem colorido, para retomar as minhas origens. E mostrar que aquele espaço, que sempre foi de terno preto ou azul, vai ter roupa colorida de mulher, sim".
O espaço que ela se refere é a Câmara Municipal de Vitória. Aos 36 anos, a candidata do PSOL é uma das duas mulheres eleitas. A outra foi a advogada Karla Coser (PT). Desde 1989 o município não elegia mais de uma mulher para o espaço.
Nascida em 1984 em Vitória, Camila Costa Valadão se mudou ainda criança para o bairro Parque Residencial Laranjeiras, na Serra. Foi ali que cresceu ao lado dos primos e muitos amigos. "Uma infância e adolescência que consegui aproveitar com muita socialização. Adorava ficar na rua". Filha do meio de uma dona de casa e de um pai que 'trabalhou em diversos empregos na perspectiva de sustentar a família', ela conta que nunca faltou nada em casa. "Uma hora ele era autônomo, em outra era contratado de uma empresa, mas não ficava sem trabalhar. E minha mãe terminou o ensino médio quando eu tinha 8 anos".
QUASE DOUTORA
Se a mãe não teve oportunidade de estudar, o caminho da filha foi diferente. Frequentou escola pública e particular até entrar para a Universidade Federal do Espírito Santo no curso de Serviço Social. Foi a primeira mulher (por parte da família materna) a estar no ensino superior gratuito. E a avó falava disso com alegria. "Foi um marco para ela que tinha muito orgulho de ter uma neta estudando na Ufes. Para ela, era de uma simbologia enorme". A tia Vanda, assistente social e professora universitária, foi o norte. "Ela sempre foi uma referência. Achava lindo uma mulher que trabalhava e tinha sua independência".
Se formou, trabalhou e se tornou mestre. Camila chegou muito mais longe do que as pessoas imaginavam. Agora está prestes a se tornar doutora em política social. "Estudo em boa parte do dia, preciso terminar a tese que é sobre Cuba", conta rindo. Um dia normal na vida da capixaba começa às 6 horas. É após o café que a rotina de estudos se inicia. O filho acorda por volta das 8 horas, quando ela o amamenta. O momento acadêmico é intercalado com as atividades políticas e da casa. "Divido as responsabilidades com meu companheiro, que pediu demissão do emprego para ajudar nos cuidados do nosso filho. Eu passo pano na casa, tiro poeira dos móveis e lavo as roupas", conta.
O AMOR NA MARCHA DAS VADIAS
Camila conheceu Francys Lacchine enquanto participava da Marcha da Vadias, em 2014. Ela estava solteira há algum tempo. E integrava a manifestação que protesta pelo direito das mulheres usarem as roupas e se comportarem da forma que quiserem. O direito sobre o próprio corpo. "Caminhava quando um rapaz falou: 'Nossa, tinha que ter uma marcha dessa mensalmente para ver se as pessoas abrem suas mentes'. Eu fiquei apaixonada na hora", conta rindo. Trocaram apenas algumas palavras e seguiram seus caminhos.
Dias depois se encontraram em outro evento na cidade. Lá conversaram e acabaram trocando alguns beijos. "Só que eu era candidata ao Governo e ele ficou assustado. Foi após as eleições que começamos a namorar". Se casaram dois anos depois na Igreja São Francisco de Assis, em Laranjeiras. Cerimônia religiosa feita por um padre progressista e com direito a uma festa para 250 pessoas. "Foi um festão, fiz questão de convidar todas as pessoas queridas que marcaram a minha vida".
Álbum de Camila Valadão
VAI PRA CUBA
A capixaba sempre ouviu, em tom provocador, de outras pessoas: "Vai para Cuba". E ela foi. Em 2018 a estudante desembarcou na ilha caribenha através do programa acadêmico que está veiculada, que debate políticas sociais em diversas partes do mundo. Morou os 15 primeiros dias na casa de uma família cubana e o restante dos 6 meses num apartamento alugado. Frequentou as aulas de economia da universidade, conheceu o mar caribenho, os pontos turísticos e um lugar completamente diferente do seu país. "Foi uma experiência enriquecedora. Fui para entender como funciona o sistema de proteção social, as políticas de saúde e educação. Lá todos têm muita percepção sobre política e sabem o que está acontecendo, seja para discordar ou concordar. Esse é o grande choque de realidade, porque aqui as pessoas não debatem sobre política", conta.
Não é o caso dela. Camila cresceu nesse universo. A família teve uma militância muito importante na Serra e contribuiu para o processo de fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) no município. "Eu ia como os meus pais nas reuniões que aconteciam na rua ou na casa da minha tia, essa é uma das recordações". Se filiou ao partido aos 17 anos e, em 2005, saiu para participar da construção do PSOL no Estado. "Me decepcionei muito com o PT. Quando o partido chegou ao poder executou um conjunto de coisas das quais ele discordava antes", diz. Foi candidata a governadora, depois tentou uma vaga na Câmara Municipal, até ser eleita vereadora com 5.625 votos. Ela se declara uma mulher de esquerda e ecossocialista. E se descobriu ainda mais feminista após levar um tapa na cara de um homem na Rodoviária do Tietê, em São Paulo, há 10 anos. "Até hoje não consigo te dizer o motivo de apanhar de alguém que nunca vi na vida. Imagino que tenha sido vítima de racismo".
MÃE DE PLANTA
Fã de mulheres como Lélia Gonzalez, Carolina de Jesus e Sueli Carneiro, ela sabe que 'quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela', como diz a filósofa Angela Davis. Aliás, Camila não liga para os questionamentos sobre sua negritude. "Muitas pessoas indagaram se sou negra, porque no país tem os tons de pele. Faço questão de afirmar a minha identidade como negra, foi um processo de construção para mim também, a minha percepção e da minha cor. Entendo que é parte da construção do que chamamos da branquitude no Brasil. Sou negra e não tenho vergonha de assumir". De acordo com o entendimento do Movimento Negro e da classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os negros são a junção dos pretos e dos pardos. "Pardo, para mim, é papel e não gente", diz ela, que adora ouvir os capixabas Gavi, Gabi Brown, André Prando, Rodrigo Novo e A Transe. Além de Sérgio Sampaio, Belchior e Elis Regina.
Apaixonada por Carnaval, é muita música que toca em sua casa, no bairro Maria Ortiz. Ao som do seu rádio ela cuida de suas 30 plantas. "Fui adquirindo algumas, replantando outras, elas vão crescendo e a gente perde as contas". Camila virou uma mãe de planta. E nem precisou de roupa estilosa para isso.
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