Michele Pin não esquece. Foi durante as férias, num parque temático americano, que levou o primeiro tapa na cara. O agressor era seu namorado e não aceitava seu passado e nem os relacionamentos anteriores. A capixaba foi do céu ao inferno, vivendo todas as etapas da violência - das juras de amor as agressões.
Filha caçula de um italiano e de uma mulher negra, ela conta que desde pequena teve que aprender a importância de se proteger e se valorizar. “Sofri os preconceitos e discriminações por ser filha de uma mulher negra”. Cresceu no bairro Jardim América, em Cariacica, foi modelo internacional por 12 anos, trabalhando em diversos países até se tornar jornalista. “Atuei como repórter na TV Bandeirantes em 2010, no programa ‘A noite é uma criança’”, lembra. A independência e experiência não a tirou das estatísticas da violência contra a mulher. “Cheguei ao fundo do poço ao ter uma arma apontada para a minha cabeça, dentro de um carro em plena Avenida Paulista, pelo meu próprio namorado, a pessoa que dizia me ‘amar’ mais do que tudo”, conta. O acontecimento foi o gatilho que a fez despertar e criar um espaço de diálogo com outras mulheres, o canal virtual “Help in Love”. Em cinco anos de aconselhamentos, recebeu mais de 60 mil pedidos de ajuda e identificou que uma das maiores causas de relacionamentos abusivos era a falta do amor-próprio.
Michele se tornou ativista e escritora. Casada, lançou o livro “Desafio do Amor-Próprio”, em 2019, e trabalha em parceria com a Subsecretaria de Políticas Públicas para a mulher (SUBPPM-RJ) e a Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam) no combate à violência doméstica. Nesta entrevista, ela relembra o pesadelo que viveu.
Como foi vivenciar um relacionamento abusivo por um ano?
Foi o ano mais intenso da minha vida. Desde o início já era diferente de tudo que eu tinha vivido em um relacionamento amoroso. Ele me tratava com uma atenção fora do comum e um excesso de cuidado, que acabou gerando em mim uma enorme dependência emocional, ao ponto de me fazer acreditar que aquela possessividade e desiquilíbrio emocional eram por amor. E, assim, de forma muito velada fui aceitando o inaceitável e, perigosamente, fui normalizando vários tipos de violência doméstica.
Que tipo de violência doméstica você sofria?
A violência doméstica envolve a violência física, psicológica, sexual, moral e patrimonial, e se divide em três estágios cíclicos. O primeiro é de tensão (humilhações, ofensas e provocações); o segundo é de explosão (ameaças, tapas e socos); e o terceiro é a lua de mel (juras de amor, pedidos de desculpas, promessas e presentes). Infelizmente, eu vivi todas essas etapas em um ano de relacionamento.
Você chegou a ser agredida fisicamente?
Sim. Mas a violência contra a mulher normalmente começa com a violência verbal e psicológica e num piscar de olhos se transforma na violência física. É um caminho sem volta, porque sempre a próxima violência vai ser pior que a última. Eu me lembro de ter tomado meu primeiro tapa na cara, no meio de um parque temático americano, porque quis dar um basta na loucura dos incansáveis interrogatórios sobre o meu passado e meus antigos relacionamentos. Ali testemunhei de forma muito dura uma dor que jamais senti. Nunca tinha levado um tapa dos meus pais, sempre fui a caçula da casa. Mas eu já me encontrava totalmente envolta pelo ciclo da violência doméstica - um vício cíclico e compulsivo - e acabei por perdoá-lo, acreditando que jamais aconteceria novamente.
Michele Pin
Jornalista
"Tive fotos rasgadas, perdi lembranças familiares de anos da minha vida, que nos picos de raiva eram destruídas em conjunto. Era uma situação muito doentia e desgastante"
É verdade que você teve uma arma apontada para a cabeça, dentro de um carro em plena Avenida Paulista (SP), pelo namorado da época?
Estava vivendo o ciclo da violência doméstica sem ao menos saber que existia um ciclo. Tive a sorte de conseguir sair dali viva, quebrar o ciclo e procurar ajuda. Nesse estágio não podemos mais nos silenciar, não podemos ter vergonha e medo de pedir ajuda. Como diz minha amiga e também ativista na causa Cristiane Machado: “Quem tem que ter vergonha é o agressor e não a vítima”. Então, não se cale.
Que tipo de palavras seu ex-companheiro usava durante o relacionamento?
“Você nunca vai ser feliz sem mim”, “Ninguém nunca te amou como eu te amei” e por aí vai, seguindo a padronização de falas dos abusadores. Mas nessa última fala ele estava certo, ninguém mesmo tinha me amado como ele, de forma tão manipuladora, descontrolada e perigosa. Eu vivi um relacionamento tendo que me justificar 24 horas para agradar e não brigar sobre o meu passado. Mesmo assim não era o suficiente, porque o que ele realmente desejava era apagar o meu passado. Me culpava por ter vivido outros relacionamentos, como se eu tivesse o poder de voltar e apagar minha história. Tive fotos rasgadas, perdi lembranças familiares de anos da minha vida, que nos picos de raiva eram destruídas em conjunto. Era uma situação muito doentia e desgastante.
De que forma você ressignifica a sua vida?
A quebra do ciclo foi muito dura, porque também me vi totalmente dependente, emocional e financeiramente daquela pessoa, a ponto de perder a minha própria identidade, de ficar afastada de todos. O relacionamento abusivo é tão nocivo que te faz acreditar que somente o amor daquela pessoa é real. Amigos e familiares não são bons. Mesmo sem concordar, você vai se anulando e se minando gradualmente, a ponto de perder o seu poder de fala, e quando a mulher vivencia essa perda ela já está sendo violentada de várias formas. Foi um trabalho árduo de resgate pessoal, um passo a passo interno como proponho no meu livro “Desafio do amor-próprio”. Foi me redescobrindo e me respeitando, valorizando as conquistas um dia de cada vez que me tornei livre dessa relação abusiva. Há 6 anos venho me dedicando a alertar outras mulheres a perceberem o risco que estão correndo ao viver esse tipo de relacionamento. Transformei minha dor e experiência em ativismo para ajudar a salvar outras mulheres e a alertar as meninas.
Como surgiu a ideia de escrever o livro “Desafio do amor-próprio”?
Decidi escrever o livro logo após ter criado o Help in love, site para ajudar meninas e mulheres nos seus relacionamentos amorosos. Em cinco anos de aconselhamentos foram mais de 60 mil pedidos de ajuda por e-mail, nos quais identifiquei que muitos relacionamentos se tornavam abusivos porque faltava autoconhecimento de ambas as partes. Não existia a base, que é o relacionamento mais importante que precisamos ter, com nós mesmas! Como alerto no meu livro: “Quem não tem amor-próprio não tem amor para dar...”. O respeito e amor que desejamos do outro, precisa começar sempre por nós mesmas.
Álbum de Michele Pin
Você diz que após várias tentativas fracassadas de fazer um relacionamento amoroso funcionar, aprendeu uma nova forma de se relacionar. Que forma é essa?
Essa forma nova e tão transformadora que aprendi foi a de me relacionar comigo mesma. Pois acredito que antes de nos doarmos para outra pessoa, temos que primeiramente nos pertencer. E essa doação geralmente é feita de forma desequilibrada e desproporcional, pois aprendemos, meninas e meninos, nas nossas primeiras instituições - a família e a escola - a nāo falarmos dos nossos sentimentos, daí advém a nossa falta de inteligência emocional para lidar com a vida. Sabemos quase sempre muito dos outros e muito pouco, ou quase nada sobre nós mesmas. Por isso precisamos aprender de forma saudável a nos amar. Tenho um projeto em andamento que se chama “Amor-próprio vai à escola”, onde proponho o autoconhecimento como matéria-chave nas grades escolares. Precisamos nos amar e amar o outro de forma equilibrada e inteligente.
Qual o seu trabalho na Subsecretaria de Políticas Públicas para a mulher (SUBPPM- RJ) e da Delegacia de Atendimento à Mulher?
Me coloquei à disposição da Subsecretaria de Políticas Públicas para Mulheres, e amadrinhei algumas ações ligadas às casas de apoio que recebem e acolhem mulheres em situação de violência e vulnerabilidade no Estado. Dando apoio e suporte para a criação de aulas de defesa pessoal, doando os meus livros, para os primeiros passos do resgate da autoestima, abrindo caminho para o autoconhecimento, através de rodas de conversas que visa o empoderamento dessas mulheres, que precisam recuperar o seu amor-próprio e sua dignidade. Todo esse trabalho é feito com muito cuidado, carinho e respeito pelas suas histórias. Um trabalho com muito amor, empatia e sororidade. Como cidadã e ativista também apoiei ações na Delegacia de Atendimento à Mulher do centro do Rio de Janeiro, ajudando na implantação de uma brinquedoteca e, recentemente, fui convidada a criar um projeto de padronização das brinquedotecas de todas as Delegacias de Atendimento à Mulher do Estado, com o objetivo de proteger, de forma lúdica, as crianças que chegam com suas mães no momento em que vão prestar queixa e fazer o boletim de ocorrência. Tudo para que essa criança não sofra outro tipo de violência ouvindo os trágicos relatos de sua mãe.
Que tipos de depoimentos chegam até você?
Desde casos mais comuns, como amores não correspondidos até casos de violência doméstica, por isso o trabalho em conjunto com a SUBPM e a Deam.
Como acabar com a violência contra a mulher?
Com uma sociedade mais igualitária, onde precisamos desmistificar a cultura da superioridade masculina que nos faz vítimas dessa violência diariamente. Com muito autoconhecimento, informação, e um trabalho de base, como o que eu e muitas de nós estamos fazendo. O amor-próprio é essa base, esse início de tudo. Ele é o grande agente protetor que ajuda a mulher a identificar quando está diante de uma relação abusiva logo de início. É transformador, por que a faz acreditar na própria força para sair do relacionamento e quebrar o ciclo vicioso da violência doméstica, que só nos primeiros seis meses da pandemia fez 1890 vítimas.
Como está a vida?
Hoje, mãe da minha maior inspiração, minha filha Bella Maria, de 2 anos, posso dizer que encontrei meu caminho e venho construindo diariamente o meu amor-próprio. Porque amor-próprio é construção diária. Como escritora, me realizei, ressignifiquei a minha vida e transformei a minha dor em combustível para ajudar outras mulheres a também acreditarem em si e a terem a chance de reconstruir seus próprios caminhos com dignidade, respeito e muito amor-próprio. Afinal, todas nós merecemos nos imunizar do vírus da violência doméstica e buscar nos conhecer, nos priorizar e nos amar.
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