Sete meses. Esse é o tempo que a pandemia já dura no país. Tempo que o vírus se espalhou e não foi embora. E durante todos esses meses a população viveu de tudo. Ficou reclusa, aprendeu a usar máscara, a lavar as mãos, deixou de ver parentes e amigos. Viu o número de mortes chegar a milhares e profissionais de saúde exaustos. O home office se tornou normalidade para muitos trabalhadores. Enquanto outra enorme parcela da população teve que continuar trabalhando normalmente - e a ameça do vírus ficou ainda mais próxima.
Nos últimos dias fotos de praias lotadas em todo o país causaram revolta em muitos brasileiros. Quem está fazendo o isolamento social se sentiu desrespeitado por ainda estar dentro de casa. Já quem sai acha que tem o direito de poder circular livremente e frequentar os lugares. Nessa entrevista, a psicóloga Angelita Scardua, que é doutora pela Universidade de São Paulo, especializada em Desenvolvimento de Adultos, na experiência de Felicidade e nos estudos da Psicologia Social, explica os caminhos para entender o que fazer com a percepção de estar respeitando o isolamento enquanto os outros socializam.
Estamos com 7 meses de pandemia no país. Criou-se a expectativa que ficaríamos 3 meses em casa e depois a vida voltaria ao normal. Porém não foi o que aconteceu...
Não estávamos preparados para a pandemia e nem para ficar tanto tempo em casa. Especialmente na nossa cultura, o brasileiro de forma geral é muito extrovertido. Entendemos que aproveitar a vida é sair de casa, encontrar amigos, ir à praia. Estar fora de casa, no nosso imaginário, está relacionado a aproveitar a vida. Ficar nela é como se estivesse deixando isso passar. Nesse sentido, a ideia de estar isolado dá a sensação de que não aproveitamos a vida. E também tem o fato de que a pandemia foi uma imposição sanitária. As pessoas acataram em nome da saúde pública e do bem comum. E tiveram que se adaptar à rotina com crianças, trabalho... Casais passaram a conviver 24 horas. Tudo mudou rapidamente sem que as pessoas pudessem planejar. Elas entenderam que duraria 3 meses e a situação vem se prolongando. Quem pode ficar em casa, sem a preocupação econômica (e muitos profissionais podem trabalhar de casa), sofre menos com o isolamento social. Já as pessoas que, por alguma razão o trabalho não permite isso, sofreram muito mais. O cenário do isolamento é multifacetário, tem várias categorias, e para cada uma delas a pandemia tem sido vivenciada de maneira diferente. Não dá para dizer que é igual para todo mundo. Quem pôde ficar em casa teve a oportunidade de se reconectar com o filho, de descobrir novas habilidades. Para quem não pôde, o cenário é outro, o impacto é diferente. Algumas pessoas sentem que ficar em casa é uma questão de responsabilidade social, uma consideração por todos. Quem pensa assim é quem pode ficar sem as perdas financeiras. Muitas outras pessoas não tiveram escolha. Vimos no último final de semana uma galera indo para praia, ruas e restaurantes. O estar em casa sem poder interagir socialmente é muito sofrido. É natural que as pessoas queiram se encontrar, que os profissionais que trabalham na rua aproveitem para tentar recuperar o que perderam durante o isolamento. E quem pode ficar em casa se sinta incomodado.
Muitas pessoas estão se queixando de estarem cumprindo o isolamento social e se sentindo desrespeitadas enquanto outras estão indo para rua. Por que isso acontece?
É meio que olhar para o próprio umbigo. Existe egoísmo dos dois lados. Da parte que condena quem está na rua porque tem o privilégio de ficar em casa. E da outra, que são aqueles que estão na rua de forma desnecessária, inclusive sem os itens de proteção. Se você se sente satisfeito e realizado com o fato de ser fiel aos seus princípios, ok. Uma vez que está vivendo de acordo com os princípios que acredita não vai julgar o outro porque não está fazendo o mesmo que você. Mas se passa a julgar é importante parar e refletir porque a atitude do outro incomoda tanto. Entendo que muita gente fica em casa - porque pode, acredita que é legal e esse é o papel da pessoa solidária. Mas no fundo queria estar na rua com a galera. Falta um pouco de autenticidade na escolha de ficar em casa. Essa atitude de julgar o outro por não fazer o que eu faço, revela mais uma insatisfação com aquilo que tá fazendo do que uma preocupação coletiva. Se for me preocupar com a coletividade, a maioria não pode ficar em casa. Tem a diarista, o vendedor de picolé, o balconista, o padeiro... Essa é a maioria da população e essas pessoas não possuem condições de ficar sem ganhar dinheiro.
Angelita Scardua
Psicóloga
"Se for realmente me preocupar com a coletividade, a maioria não pode ficar em casa. Tem a diarista, o vendedor de picolé, o balconista, o padeiro... Essa é a maioria da população e essas pessoas não possuem condições de ficar sem ganhar dinheiro"
As praias e restaurantes, por exemplo, estão ficando cheios e é um direito de cada um decidir onde que ir. Mas é necessário exibir isso nas redes sociais?
É a questão do respeito da individualidade. A rede social é da pessoa e ela posta o que bem entender. Se não está difamando ou agredindo outra pessoa, é o direito dela postar o que quiser. Os demais vão lá e assistem se quiserem. Se o comportamento não agrada basta parar de visitar e visualizar. O problema é querer policiar a vida do outro. Não posso querer que o outro se submeta as minhas vontades.
Como mediar o conflito entre quem sai e os que vigiam e que repreendem quem está circulando normalmente?
As pessoas precisam ser menos autoritárias e respeitar a individualidade. Eu posso achar que é correto usar máscara e álcool. E outra pessoa pode não achar, é direito dela. Eu, por exemplo, só saio de máscara. E quando alguém vem ao meu encontro sem o acessório tento manter a distância, além de evitar aglomerações. Mas não é civilizado ou democrático querer impor ao outro aquilo que acho correto. Penso que no fim das contas estamos vivendo no Brasil a situação onde todo mundo tá sentindo o direito de impor a verdade para o outro. E isso é complicado. Uma coisa é a lei, onde todos têm que obedecer, outra é a opção pessoal que ninguém tem que se meter e cada um que se responsabilize pelas suas escolhas. Você quer se proteger, crie seus mecanismos de proteção. Como indivíduo não posso ficar policiando a vida das pessoas no meio da rua.
Quem tem circulado normalmente argumenta que não aguenta mais ficar em casa. Que precisa sair para espairecer, questão de saúde mental. É errado?
Novamente, cada um tem o direito de decidir o que quer. Temos um problema seríssimo que é o confinamento para os mais jovens, que está muito associado ao adoecimento mental. A gente vem de um cenário crescente de doença mental em adolescentes. Vários estudos demonstram que eles são mais vulneráveis. O isolamento prolongado vai gerar um custo para saúde pública que talvez seja equivalente à Covid-19 ou até maior no longo prazo. O adoecimento mental pode levar ao aumento do número de suicídio, incapacitação para o trabalho, vida social e familiar, aumento do consumo de drogas, condição de relações abusivas... São várias as consequências. E o que acontece é que o isolamento contínuo também pode gerar vários transtornos como o de ansiedade e alimentar. É complicado quando a gente pensa em obrigar as pessoas a ficarem dentro de casa. O ser humano tem necessidade de interação social. O contato com natureza é fundamental para a saúde mental. Quando a gente pensa em saúde pública é um conjunto complexo, não é só curar da doença, mas criar condições para que as pessoas evitem a doença. Ao mesmo tempo que o isolamento é preventivo do contágio do vírus, ele também gera condições para o adoecimento mental e físico.
Angelita Scardua
Psicóloga
"A gente tem um problema seríssimo que é o confinamento para os mais jovens, que está muito associado ao adoecimento mental. O isolamento prolongado vai gerar um custo para saúde pública"
É preciso que os pais fiquem atentos?
É importante observar se o adolescente está trocando a noite pelo dia, passando mais tempo no computador, negligenciando a higiene pessoal, se está mais fechado e agressivo. São sinais que podem indicar um adoecimento mental e emocional. Os jovens são os mais vulneráveis, mas serve para todo mundo. E tem também a questão das pessoas que vivem as relações abusivas, como no casamento ou com as crianças. O isolamento é uma tragédia para elas, porque ficam nas mãos do abusador completamente reféns.
Como não brigar com amigos e familiares?
O caminho para solução é o diálogo, as pessoas precisam conversar, entender as necessidades um dos outros, o ponto de equilíbrio para ambos os lados. Não pode impor o ponto de vista. Eu falo com a minha mãe, ela não aceita ficar trancada dentro de casa. Não posso amarrá-la, tenho o meu limite. É preciso entender porque para um é importante ficar em casa e para outro é importante sair.
Por que nos assustamos (e causamos alvoroço) quando fotos de praias cheias são divulgadas, mas não temos a mesma atitude com fotos de ônibus lotados diariamente?
Quando a gente vê pessoas indo trabalhar é porque elas precisam ganhar o sustento. É triste, mas é uma necessidade e eles precisam sobreviver. Na praia é uma escolha, você opta ir ou não, por isso as pessoas estão incomodadas. Elas estão lá porque querem e isso gera uma diferença. Outro aspecto é mais complexo: quem está se indignando na rede social? Quem pode ficar em casa, uma minoria da população de classe média e alta. No Brasil há uma diferenciação entre as classes, quando a média e alta vê o pobre indo trabalhar no ônibus lotado é porque a vida do pobre é assim mesmo. Como se aquela condição fosse natural. O povão não está se indignando com nada, pra maioria ter gente na praia significa poder fazer um dinheiro pra comprar comida. A situação da pandemia expõe muito a desigualdade social no Brasil. A gente vive numa bolha, cada camada social vive na sua, e tende a achar que o mundo é a nossa bolha.
Angelita Scardua
Psicóloga
"A situação da pandemia expõe muito a desigualdade social no Brasil. A gente vive numa bolha e tende a achar que o mundo é a nossa bolha"
É preciso mais empatia?
Precisamos exercitar mais o senso democrático da individualidade, do respeito, e as diferenças entre as pessoas. São realidades diferentes, então não posso julgar o outro em função dos meus valores, da realidade que vivo. Vivemos em um país com muitas realidades, precisamos entender isso. Enquanto não pararmos para olhar o próprio umbigo, a gente vai querer controlar a vida de todo mundo. E aí não chegamos a lugar nenhum. Precisamos ser menos julgadores e mais compreensivos.
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