Nicole Correa de Barros tem 23 anos. Moradora de Itararé, em Vitória, quase não tem fotos da adolescência. Ela não gostava de sorrir. Frequentou escola pública, foi criada pela avó, gostava de fazer coisas como qualquer adolescente, começou a trabalhar cedo e até há alguns anos exibia dentes com cáries. Nicole é o retrato da saúde bucal no país.
Pelo menos até conhecer, há seis anos, o projeto Dentistas do Bem - principal programa da Turma do Bem, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), cuja missão é mudar a percepção da sociedade na questão da saúde bucal. Trocando em miúdos, Nicole passou a frequentar consultório odontológico, aprendeu a escovar os dentes, além de usar fio e creme dental adequadamente.
A jornalista Heloísa Bergami, 26 anos, também teve problema de cárie. Ela sempre teve a saúde bucal como um tema importante em sua vida. Na infância, assistia às palestras e também aprendeu sobre os cuidados básicos. "Ia ao dentista quando precisava, não era algo recomendado, mesmo eu tendo necessidade. Usei aparelho ortodôntico duas vezes na vida. Cuidava e ia nas consultas de rotina uma vez por mês", lembra. Mesmo com todos os cuidados, Heloísa teve cárie dentária.
Há dois anos ela teve um problema mais sério de canal e teve que fazer outro procedimento mais caro. "Fiquei um ano tratando. Também tive uma dor de dente insuportável, ela não parava e o dente acabou ficando sensível", lembra.
Heloísa passou a ter um cuidado maior com a escovação, o uso do fio dental e a escolha da melhor escova para o seu tipo de dente. Ela tratou a cárie. "Hoje sou uma pessoa bem criteriosa com a minha saúde bucal, porque senti os dois tipos de dores - a física e a financeira. Nas poucas vezes, quando faço a escovação de maneira rápida, parece que não está completa. Não economizo tempo e nem produto. Tenho um cuidado muito grande com a minha saúde bucal", conta.
Nicole e Heloísa fizeram parte das estatísticas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase metade da população mundial sofre de doenças bucais, totalizando 3,5 bilhões de pessoas. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal 2020/2023, realizada pelo Ministério da Saúde, considerada uma das principais análises da saúde bucal no país, mostram que a cárie no dente é um dos principais problemas de saúde bucal no Brasil.
Entre as crianças e adolescentes, o principal problema identificado são as cáries. Aos 5 anos, quase metade (49,2%) delas está com dentes cariados. Aos 12, são 51%. Dos 15 aos 19 anos, 67% têm cáries. Em 2010, a proporção era de 76% nesse último grupo. Entre os adultos de 35 a 44 anos e idosos de 65 a 74 anos, a cárie permanece sendo um problema ao longo da vida. Cerca de 14 milhões de brasileiros acima de 18 anos vivem sem nenhum dente, e outros 34 milhões já perderam 13 ou mais dentes. Os idosos representam a maior porcentagem dessas pessoas, com 31,7%.
Já o movimento “Juntos Contra a Carência Dental”, que visa conscientizar a sociedade sobre o tamanho da carência de saúde bucal no Brasil, traz outros dados sobre a cárie.
O QUE É A DOENÇA
A cárie é uma doença que começa quando os ácidos produzidos pelas bactérias na nossa boca atacam o esmalte dos dentes. Com o tempo, esses ácidos podem criar buracos, chamados cavidades. Se não tratada, ela pode causar dores intensas, infecções e até mesmo a perda de dentes.
"A cárie é uma doença bucal causada pela ação de bactérias, que se alimentam de restos de comida presentes na boca, liberando substâncias ácidas que danificam o esmalte dos dentes. Isso, por sua vez, forma buracos (também conhecidos como cavidades), causando sintomas, como dor de dente e sensibilidade. Seu comportamento 'silencioso' é um dos fatores que a torna tão comum", alerta a cirurgiã-dentista Vanessa Leal Tavares Barbosa.
A dentista conta que as bactérias se alimentam de açúcar e carboidratos nos alimentos que ingerimos, produzindo ácidos. Se os ácidos permanecerem no dente e não forem escovados, eles dissolvem os minerais do esmalte duro, resultando na descalcificação do esmalte.
"Com o tempo, o esmalte é corroído ou desenvolve cavidades. Elas são pequenas demais para serem vistas no início. Mas ficam maiores com o tempo. Se o esmalte cariado não for tratado, o processo de corrosão continua, formando cavidades dentárias", diz Vanessa Leal Tavares Barbosa.
A dentista orienta que o paciente deve se preocupar assim que notar os primeiros sinais de desconforto ou sensibilidade nos dentes. "A cárie dentária pode progredir rapidamente, e quanto mais cedo for tratada, melhor", diz Vanessa Leal.
A presença da cárie dentária poderá afetar negativamente a qualidade de vida relacionada à saúde bucal tanto do paciente como a da sua família, levando, muitas vezes, a uma condição bucal de completa destruição dentária e dor, comprometendo a mastigação, promovendo a perda de apetite e de peso, déficit de crescimento, dificuldades na fonação, alteração nos padrões de sono, diminuição do rendimento escolar, além de alteração no comportamento (baixa autoestima).
"A pessoa com cárie em estágio avançado, não consegue realizar as suas funções diárias, como comer, estudar, trabalhar e dormir. A cárie é uma doença com grande impacto social e econômico, além do prejuízo a saúde bucal", diz a dentista.
SORRINDO PARA A VIDA
Nicole Correa de Barros conta que sempre teve cuidados básicos com os dentes, mesmo não tendo condições de ter uma boa pasta de dente. "E ficava anos com a mesma escova. A pasta era sempre a mais barata ou a que recebia na Unidade Básica de Saúde do meu bairro". Foi na escola que aprendeu a escovar os dentes.
Os problemas começaram aparecer por volta dos 12 anos. "Quando criança a minha arcada dentária era muito aberta. Tinha dificuldade para falar, inclusive não conseguia pronunciar algumas palavras. Os probelmas acabaram gerando cáries. Eu não gostava de sorrir".
Nicole conta que fez um esforço para colocar o aparelho, mas não tinha condições financeiras de fazer a manutenção. "Tinha que escolher a prioridade, que no meu caso, era o alimento para dentro de casa".
Até que Nicole conheceu a Turma do Bem através de uma matéria na televisão. Pesquisou e mandou um email. O projeto existe desde 2002 e foi criada pelo cirurgião-dentista Fábio Bibancos a partir de seu trabalho no projeto “Adotei um Sorriso”. Desde então, tornou-se uma das mais bem sucedidas experiências em prol da preservação da saúde bucal das crianças e adolescentes do Brasil.
O início do trabalho foi modesto. De lá para cá, mais de 400 mil jovens já passaram pelas triagens e 16 mil já foram encaminhados para tratamento. A causa é a mesma: a luta pela saúde bucal de quem não tem dinheiro para frequentar os consultórios particulares.
A capixaba ficou durante seis anos no projeto, onde além de cuidar das cáries teve que tirar oito dentes, fazer duas restaurações, dois canais, além de muita limpeza e manutenção. "Coloquei vários mini-implantes e a minha vida mudou após esse tempo. O protocolo de cuidados que aprendi com a dentista virou um hábito. A minha autoestima melhorou muito. Hoje tenho várias fotos sorrindo".
OS PROBLEMAS
Para a cirurgiã-dentista Larissa Pavesi, é possível dizer que cárie é resultado, dentre alguns fatores, das “escolhas ruins” na nossa alimentação, por conta do consumo de alimentos ultraprocessados e com alto teor de açúcar, grandes vilões da saúde bucal. A doença, no entanto, também está relacionada a complicações de outras doenças ou medicamentos que diminuem a quantidade de saliva na boca, como, por exemplo, o diabetes e a hipertensão, além da falta de higiene correta da cavidade oral.
Esse é um problema que pode afetar a vida de uma pessoa de diversas maneiras, através de dores, desconforto ao comer e, até mesmo, na autoestima devido à aparência dos dentes. O que parece simples, no entanto, pode trazer consequências mais graves.
E desencadear até mesmo problemas cardíacos; perda dental, pois a deterioração do dente pode resultar na necessidade de extração; problemas alimentares, em que a dificuldade de mastigar pode afetar a nutrição; e dor crônica, impactando na qualidade de vida do indivíduo, como explicou a dentista. A cárie passa por quatro fases distintas.
PREDISPOSIÇÃO A CÁRIE
Mas será que algumas pessoas têm maiores chances de desenvolvê-la, seja por questões individuais ou por determinadas condições bucais? Larissa Pavesi diz que alguns estudos já chegaram a relacionar o fator genético ao desenvolvimento da cárie, mas, em geral, indivíduos com a higiene bucal comprometida, que não seguem uma alimentação equilibrada, e que utilizam certos tipos de medicamento estão mais propensos a desenvolver cáries.
"As crianças precisam de atenção redobrada devido aos seus dentes em desenvolvimento e ao consumo de doces, além de, geralmente, estarem em fase de aprendizado de uma escovação eficaz e do uso consciente do fio dental", reforça.
Vale ressaltar que a cárie não é transmissível. "Não é possível passar cárie de uma pessoa para outra, principalmente através do beijo, e nem de um dente para o outro", reforça a dentista.
O TRATAMENTO
Ive Barteli Camatta, dentista e professora de Odontopediatria do Unesc, diz que as crianças precisam de uma atenção maior no que diz respeito ao desenvolvimento da lesão de cárie, porque é justamente nessa faixa etária, ou seja, na primeira infância, que focamos na prevenção do desenvolvimento da lesão de cárie.
"É nesse momento que as primeiras informações sobre como a cárie acontece são transmitidas aos pais ou responsáveis. É aí que o cirurgião-dentista vai atuar, informando à família como é possível fazer a prevenção da lesão de cárie. Esse período é muito importante para a prevenção da doença. Nas crianças, devemos sempre pensar em prevenção e nunca em tratamento", diz.
A dentista diz que o tratamento vai depender da extensão, da profundidade e da atividade da lesão de cárie. Os cuidados podem variar desde um tratamento com aplicação de fluoreto, passando pelo tratamento restaurador e até mesmo endodôntico. "Em último caso, pensamos numa exodontia, que são as extrações dentárias, e, dependendo da situação, fazemos a instalação de implantes e de coroas sobre esse implante", diz Ive Barteli Camatta.
Larissa Pavesi explica que o tratamento da cárie acontece conforme a gravidade da condição em que se encontra. "Em estágios iniciais, por exemplo, costuma-se adotar a prática da restauração, realizada com resina composta ou amálgama para reparar o dano causado".
Nos casos em que a cárie tenha chegado a atingir camadas mais profundas do dente, geralmente entende-se que é preciso fazer uma obturação, que envolve a remoção da parte afetada e sua substituição por um material restaurador.
"Em situações mais graves, como quando a estrutura do dente está comprometida, a indicação é a inserção de uma coroa sobre o dente afetado. Ela é como uma 'tampa' feita no formato do dente e colocado sobre o mesmo, visando substituí-lo ou reforçá-lo quando enfraquecido", explica Larissa Pavesi.
Já quando a cárie chega a penetrar até a polpa do dente, pode ser necessário realizar um canal radicular para remover o nervo e a polpa infectados, preservando assim a estrutura dentária. Em casos extremos, nos quais a cárie destruiu grande parte do dente, a extração pode ser a única opção viável.
CUIDAR É FUNDAMENTAL
Escovar os dentes pode parecer uma ação simples, mas vem sendo negligenciada por 9 em cada 10 brasileiros que escovam menos do que o necessário. A escovação deve ser realizada diariamente, pelo menos três vezes ao dia, com duração de, no mínimo, 2 minutos. É importante lembrar que a escovação não deve ser feita somente nos dentes, mas em toda a boca, englobando mucosa e língua.
A cárie, se não tratada, pode evoluir para a destruição do dente e continua avançando, comprometendo os tecidos de sustentação do dente, resultando numa infecção, levando a um abcesso periodontal, que pode resultar na perda de osso e do dente.
"A progressão da cárie pode levar de meses até anos. Tudo depende de fatores como composição do esmalte, dieta, predisposição individual, higiene bucal e presença de flúor. A cárie não é uma condição que se agrava rapidamente, ou seja, ela vai progredindo lentamente com o passar do tempo, até que comprometa toda a estrutura dentária", ressalta a dentista Vanessa Leal Tavares Barbosa.
Geralmente, a cárie demora aproximadamente um ano para destruir o dente, e caso após a destruição do dente ela não seja tratada, ela pode continuar avançando e resultar na destruição do tecido periodontal, inclusive do osso alveolar.
A cirurgiã-dentista lembra que muitas pessoas se enganam ao achar que as cáries são prejudiciais apenas à dentição. Doenças graves, como o diabetes e a endocardite, estão diretamente relacionadas à disfunção e à limpeza da cavidade oral.
O cuidado diário é fundamental, já que não existe uma medicação para curar a cárie, mas existem tratamentos, e métodos para prevenir o problema. "Infelizmente, a cárie ainda é um problema de saúde pública porque ainda há pessoas sem acesso a informações e cuidados pela rede pública, ou de pessoas que subestimam o autocuidado", finaliza Vanessa Leal.
Larissa Pavesi diz que o primordial é lembrar de que fio dental e enxaguante bucal não substituem a escovação, mas atuam como um complemento para eliminar resíduos e bactérias que ficam na boca mesmo após a escovação.
A profissional orienta que o fio dental seja utilizado sempre antes da escovação para remover as placas e resquícios que ficam entre os dentes, seguido da escovação. Segue-se então para o enxaguante bucal, pois este ajuda a eliminar os resíduos que foram soltos pela escovação, potencializando a limpeza e garantindo um hálito fresco e agradável. Outro ponto que faz toda a diferença é a troca de escovas no período adequado. É importante trocá-las a cada quatro meses ou quando as cerdas começarem a se desgastar, já que esse desgaste reduz a eficiência na remoção da placa.
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