Por Morena Fornaciari em depoimento a Guilherme Sillva
"Eu era uma menina de 29 anos que trabalhava com arquitetura, tinha um escritório com um amigo, e adora fazer aulas de jazz. Era muito ativa, frequentava a academia e gostava muito da vida. Eu não tinha nenhum problema de saúde e fazia o acompanhamento dos exames normalmente.
Os meus planos com 29 anos eram morar sozinha e tinha a vontade de fazer um intercâmbio estudantil nos Estados Unidos. Até que tudo mudou em 26 de abril de 2018. Foi um dia muito tranquilo, lembro que estava feliz, fiz duas aulas de dança pela manhã e depois fui no salão de beleza cuidar dos meus cabelos. Nessa época, tinha muita dor de cabeça e enxaqueca. Já tinha ido ao neurologista, feito alguns exames e nada foi diagnosticado. Imaginava que fosse o estresse, hoje sei que não era.
Eu sempre gostei de fazer massagem e, nesse dia a noite, estava sentindo um nó de tensão no lado esquerdo do pescoço. E quando a massagista apertou eu senti uma dor descomunal. Quando ela soltou o lado esquerdo estava todo dormente. Eu ainda consegui levantar e fui na cozinha para pegar gelo, para poder colocar no local, porque estava muito nervosa. Jamais poderia imaginar que estava tendo um acidente vascular cerebral (AVC). Mas quando deitei novamente, o meu braço começou a bater de um lado para o outro e eu percebi que tinha perdido o controle motor do lado esquerdo do meu corpo.
Não lembro de muitas coisas desse momento. Dei muita sorte de ter vizinhos médicos e, enquanto chamava a ambulância, eles foram me atendendo. Familiares contam que nem a equipe da ambulância achava que era um AVC. No hospital eu percebi que queria muito fazer xixi e não conseguia. Mesmo com fralda eu não conseguia concluir esse ato. Fizeram alguns exames da cabeça e não apareceu nada. Um médico amigo da minha família, por telefone, pediu para fazerem um exame que pegava o pescoço. E foi nele que apareceu um rasgo na artéria vertebral esquerda. Ali começava o meu pesadelo, no dia entre o aniversário da minha mãe e o aniversário da minha irmã.
Fiquei 20 dias na UTI e a minha reação ao acordar foi achar que tinha morrido. Eu não tinha entendido o ocorrido e o médico falou: "Daqui para frente a gente vai fazer tudo o que puder, mas precisamos que você se entregue e se esforce". Esses dias foram horríveis e no início foi muito esquisito, porque além de estar dopada, ainda tinham as sequelas aparecendo. Eu estava entendendo que a minha perna ainda estava muito afetada, não tinha pensado que não conseguia ficar em pé ou andar sozinha, já tinha entendido que não conseguia fazer xixi ou evacuar sozinha, precisava de enfermeiro para passar sonda, e que também não conseguia engolir os alimentos, a parte que mais me afetou.
No segundo dia percebi que não estava enxergando, meus olhos ficavam fechados porque não enxergava nada além de borrões que tremiam. Estava com nistagmo, que são movimentos rápidos, involuntários, repetitivos e incontroláveis nos olhos. Tive que ficar com um tampão no olho esquerdo.
Eu não conseguia engolir minha saliva. A sonda de alimentação fazia com que meu corpo produzisse muita secreção, que eu também não era capaz de engolir ou colocar para fora. Ficava tudo ali, me sufocando. Um enfermeiro, vendo meu desespero - eu tentava tossir, cuspir e enfiar os dedos na garganta - sugou as secreções com uma mangueira. Mas o alívio durou pouco. Chamei para que sugassem a secreção novamente. O ciclo se repetiu várias vezes, até que os enfermeiros me disseram que eu já estava muito machucada, sangrando. Seria possível morrer sufocada com minha própria saliva? Acabei sendo intubada.
Foi ainda no hospital que o meu processo de recuperação começou. Eu tentei andar na primeira vez no quarto do hospital, mas não tinha equilíbrio. A fisioterapia começou logo na alta.
Não tenho nenhum registro do dia que recebi alta do hospital. Eu estava tão feliz de ir pra casa! Eu não tinha processado tudo o que estava acontecendo. Lembro de adorar a minha cadeira de rodas. Em nenhum momento fiquei assustada com essa nova condição, apenas pensei em como seria uma experiência diferente. A vida foi voltando ao normal aos poucos.
Dirigir um carro automático, por exemplo, não foi difícil, apesar de precisar usar muito o lado esquerdo - para dar seta, ligar e desligar farol e abrir a tampa de combustível, por exemplo. Faço muito essas coisas com a mão direita, que é a mão “boa”, mas sempre que possível tento usar a mão afetada e dar seta, por exemplo, tem se tornado algo natural! Depois de seis anos o meu cérebro segue se adaptando em relação ao que repito incessantemente todos os dias.
A vida depois do AVC
Na cozinha é preciso ter muita atenção e vale muito a pena recorrer a utensílios adaptados e comprar produtos já fatiados e descascados no supermercado dependendo de cada caso. Uso a mão afetada para abrir armários, segurar ingredientes, abrir a geladeira… Reparei que tenho usado ela cada vez mais para segurar pratos e copos de vidro/porcelana, o que antes eu tinha medo pela possibilidade de quebrar. Com o passar do tempo vou me sentindo mais segura e é muito legal ver pequenos avanços ainda acontecendo gradualmente, mesmo seis anos depois.
Hoje sou uma pessoa independente. Você olha para mim e não diz que tive um AVC. A não ser que a pessoa conviva muito comigo e veja eu fazendo algo com coordenação motora fina, que é onde tenho mais dificuldade. Convivo com várias sequelas que ninguém consegue ver, como o formigamento, a rigidez, a dificuldade motora no braço e na perna, as sequelas não visíveis. Aprendi que um lado do meu corpo funciona diferente do outro.
Minha história com a dança pós-AVC é cheia de idas e vindas. Na primeira aula poucos meses após a doença, ainda em 2018, tinha dificuldade de mudar de direção, sentia muita rigidez no corpo, o controle dos membros do lado esquerdo ainda iriam evoluir bastante e tinha que me preocupar com o equilíbrio. Tentei voltar pra dança algumas vezes, mas dançar também está muito ligado ao meu emocional. Perder a minha mãe e lidar com uma pandemia me fazia sentir culpa em dançar. Parei de novo.
Tempos depois, voltei e vou aos poucos. Decidi que vou tentar mais uma vez. “Tente outra vez” é meu lema. Para eu me convencer que realmente não dá para fazer algo, preciso tentar muitas vezes. Eu beiro à teimosia e se tratando de algo que amo, eu ainda vou tentar muito. Quando voltei a dançar e vi que não conseguia me expressar da mesma forma, que meu corpo não obedecia o que meu cérebro mandava, me frustrei. Aprendi que estava diferente, mas está tudo bem. A dança está me fazendo feliz e completa de novo".
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.