Todos os dias, às 17 horas, Jucileia Santos Ribeiro, sentia medo. Muito medo. Ela sabia que o marido estava chegando do trabalho e poderia espancá-la por qualquer motivo, de acordo com a instabilidade emocional dele. Dependente financeiramente do próprio agressor, a vítima não enxergava uma alternativa para sair daquela relação abusiva. Foram 14 anos de violência até conseguir ajuda.
Com apoio da Lei Maria da Penha - que há 14 anos estabeleceu punições mais rígidas para casos de violência contra a mulher -, Jucileia conseguiu uma medida protetiva, instrumento jurídico que proíbe o agressor se aproximar da vítima. Também contou com o apoio de programas sociais e aprendeu a fazer bolos.
Foi aí que a vida dela começou a mudar. Hoje, além de garantir o próprio sustento, Jucileia faz questão de passar o conhecimento culinário para que outras mulheres também tenham uma profissão e possam seguir a vida de forma independente.
SINAIS DE POSSESSIVIDADE
Jucileia, de 44 anos, conheceu o marido em 2000, quando tinha apenas 24. Ela já tinha filhos de outra relação quando começou o namoro com um homem que parecia ser protetor e lhe prometeu amor e respeito. O companheiro, no entanto, começou, aos poucos, a demonstrar sinais de possessividade.
"Namoramos por um ano até que fomos morar juntos e tivemos mais dois filhos. O abusador nunca mostra quem é no início do namoro. Ele só mostra depois, mas sempre dá sinais: diz que nossa roupa não ficou legal, que mulher dele não precisa trabalhar. E você acha que aquilo ali é cuidado, que é coisa de homem provedor, responsável. Quando, na verdade, é só a teia do abuso", lembra.
AFASTAMENTO
A boleira lembra que a primeira coisa que o agressor fez, após o casamento, foi convencê-la a morar longe da família dela, que é de Vitória. Ele dizia que na região de Fundão, longe de todos, a família seria mais feliz.
"Ele me convenceu a ir para a região de Fundão, disse que seria melhor para criar as crianças, com menos violência. Mas quando cheguei, vi que não tinha vizinho, não tinha ninguém perto. Ele quebrou meu vínculo familiar e social para que eu vivesse apenas a vida dele. Porque seria mais fácil me manter ali, sem ter a quem pedir ajuda", conta.
DESTRUIÇÃO DA AUTOESTIMA
Não demorou muito para que o marido "superprotetor" mostrasse que, na verdade, era um homem possessivo, capaz de ficar agressivo pelos motivos mais banais. A primeira forma de violência foi fazer com que Jucileia se sentisse inferior.
"Aos poucos, ele foi destruindo minha autoestima. Ele me traía e dizia que era culpa minha, porque eu tinha engordado. Era como se eu tivesse culpa de cada erro que ele cometesse. Ele me xingava porque eu estava mais gordinha ou porque eu tinha outros filhos. Durante muito tempo eu acreditei que a culpa era mesmo minha. Tanto que faço tratamento psicológico até hoje", diz.
VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA E VERBAL
Jucileia Santos Ribeiro
Empreendedora
"Eu lembro que dava 17 horas, eu ficava com muito medo porque tinha que estar tudo pronto em casa. Ele me tratava mal, me xingava, me traía e eu não podia questionar nada porque, para ele, aquilo era normal e eu tinha que aceitar. Ele foi criado assim. Uma vez o próprio pai dele me disse que ensinou ao filho que 'égua brava se educa no pau', se referindo a mulheres. Mas ninguém imaginava que eu vivia aquilo, nem minha família ou algum morador da região. Só eu e meus filhos sabíamos"
Jucileia conta que não era apenas a família do agressor que naturalizava a violência contra a mulher. Ela afirma que na família dela as agressões também eram comuns, o que dificultou que a própria vítima percebesse a gravidade do que estava vivendo ao lado do marido.
"Eu apanhei a vida toda. Apanhei do meu pai, dos meus irmãos homens e depois do meu marido. Quando é assim, a gente passa a normalizar. Eu achava que casamento era isso e que o homem podia bater. Porque sempre vivi isso", lembra.
A relação abusiva foi piorando dia após dia e não demorou muito para que as agressões passassem a ser físicas. Jucileia lembra que na primeira gravidez do casal, em 2002, ela foi espancada durante uma discussão por conta das traições do marido. Ela estava grávida de oito meses e ficou com vários hematomas. A única parte do corpo que ele não bateu, foi na barriga. Depois, a fez acreditar que a culpa de tudo tinha sido dela.
"No início ele me batia, me fazia acreditar que a culpa era minha e pedia desculpa, dizia que ia mudar. Depois ele passou a ir direto para a agressão, muitas vezes sem haver qualquer briga. Tudo dependia da instabilidade emocional dele e da dependência química que ele tinha. Às vezes eu ficava meses sem apanhar, mas tinha época que eu apanhava toda semana", conta.
Já na segunda gravidez, em 2003, a vítima sofreu mais agressões psicológicas e verbais. Mas foi no dia do parto a pior das violências: Jucileia pediu para que um amigo do agressor saísse da residência do casal. O amigo foi embora e, em seguida, ela foi espancada.
Jucileia Santos Ribeiro
Empreendedora
"Ele me bateu tanto que fiquei com o rosto desfigurado. Ele mesmo me levou ao hospital e no caminho dizia que se eu o denunciasse, mataria meus filhos. Eu não podia denunciar. Primeiro, porque ele me ameaçava, e, segundo, porque naquela época não tinha ainda uma lei firme para proteger as mulheres. As mulheres não denunciavam porque não tinha a Lei Maria da Penha, não tinha medida protetiva. Você denunciava e depois tinha que voltar para o seu algoz. Nesse segundo espancamento, como ele tentou me estrangular, o bebê ficou sem oxigenação no cérebro e nasceu com uma deficiência intelectual grave. Eu tive descolamento da retina e perdi alguns dentes. Ficamos internados em estado grave. Depois, voltei para casa e o ciclo continuou"
FASE DO "PRÍNCIPE ENCANTADO"
Após as violências, o agressor sempre pedia desculpas, passava dias em uma aparente tranquilidade, até que começavam as agressões verbais, psicológicas e físicas novamente.
"Eu chamo essa fase de 'síndrome do príncipe encantado'. É quando o abusador leva a mulher para passear, a convence que ela causou a briga, que ele não queria aquilo, que se arrepende. E todo dia você acha que ele vai mudar, que ele fez aquilo porque estava nervoso. Mas nunca muda, nunca melhora, só piora", garante.
TENTATIVA DE FEMINICÍDIO
A boleira ficou nesse ciclo por anos, até que em 2015 aconteceu algo inesperado: ela estava dormindo e acordou com o marido a espancando porque ela não tinha levantado para fazer o café. Com um pedaço de madeira, ele deu golpes na costela e na cabeça da vítima, que ainda tentou se defender. Nessa época, os filhos da outra relação de Jucileia já eram adolescentes. Eles chegaram da escola para almoçar e viram a cena da violência brutal.
Jucileia Santos Ribeiro
Empreendedora
"Até então eu não tinha me atentado que os meninos estavam vivenciando aquilo comigo. Meus filhos começaram a bater muito nele. Um dos meus filhos me disse: 'Se você não tomar uma atitude, eu vou matar ele'. Foi quando eu disse que ia me separar. Já morávamos em Vila Velha e apareceram muitas mulheres vizinhas para me ajudar, o Samu chegou. E meu filho repetiu: 'Ou você toma as medidas legais agora ou você fica com ele e eu vou matá-lo'. Eu não queria ver um filho meu preso. Enquanto o Samu atendia o agressor, ele fugiu antes da polícia chegar. Mesmo assim, eu denunciei e consegui uma medida protetiva. Mas no dia que eu tentava tirar os móveis da casa, ele apareceu querendo brigar para ficar com o fogão. Quando ele puxou o fogão, uma penela com óleo quente caiu nas minhas pernas e eu tenho as marcas até hoje"
RENASCIMENTO
Depois desse dia, tudo mudou na vida de Jucileia. Ela conseguiu sair daquela relação, pediu uma medida protetiva e começou a participar de projetos sociais. O agressor também. A prisão não saiu imediatamente, mas ele foi encaminhado para o projeto do Estado "Homem que é homem" - que tenta ressocializar esses agressores, e "Rede Abraço" - para tratar a dependência química.
"Eu sempre recebia a visita acolhedora da patrulha Maria da Penha, o que foi muito importante, já que em Vila Velha não temos Botão do Pânico. Também fui encaminhada aos programas sociais para apoio psicológico. É essencial buscar ajuda psicológica nessa recuperação. E para quebrar a dependência financeira, iniciei como aluna no projeto "Mulheres Superando o Medo", que nos ensina fazer bolos para termos uma profissão. O meu agressor foi tirado de casa, mas a renda era dele. Recebi ajuda do pastor de uma igreja, que pagou meu aluguel e deu espaço igreja dele para que eu vendesse os bolos. Comecei a vender em 2015 em uma festa da igreja e não parei mais", lembra.
Após tantos anos de dor, Jucileia resinificou esse sentimento para ajudar outras mulheres que sofrem a mesma violência que ela viveu um dia. De início, ela distribuía cestas básicas para as vítimas. Agora, a ideia é difundir os conhecimentos culinários que aprendeu no projeto, ensinando essas vítimas a fazer bolos também, para que elas tenham uma profissão e consigam quebrar o vínculo financeiro com o agressor.
"Primeiro a vítima precisa ter a independência financeira para conseguir fazer a denúncia. É por isso que muitas não conseguem sair de casa. Porque precisam comer, precisam cuidar dos filhos e tiveram a independência financeira cortada pelos agressores. Vejo muitos casos de vítimas de violência doméstica, desde o início da adolescência. Crianças que cresceram assistindo à violência também. E esse é um outro desafio que temos. Passar para as vítimas como os filhos também são atingidos", conta.
Ela completou que identificou que dois dos filhos davam sinais de naturalização de desrespeito contra mulheres, incluindo colegas e professoras. Foi quando decidiu acionar os órgãos de proteção às crianças e os dois foram encaminhados para tratamentos psicológico e projetos sociais.
"Eu via que eles não respeitavam as mulheres da mesma forma que respeitavam os homens. Depois desses trabalhos e projetos, eles melhoraram 100% até mesmo no rendimento escolar. Somos responsáveis por nossos filhos e temos que educá-los para que no futuro eles não se tornem agressores. A gente fala das mulheres vítimas de violência, e tem que falar mesmo, mas não podemos esquecer dos filhos que assistem tudo. A menina que vai achar normal ser humilhada e apanhar, o menino que vai achar normal bater na colega da escola ou nas irmãs em casa. Precisamos, juntos, quebrar esse ciclo", diz.
SAIBA COMO AJUDAR
O projeto Mulheres Superando o Medo, da ONG Win - Instituto de Inovação e Tecnologia, recebe apoio do Tribunal de Justiça do Espírito Santo - através da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica do TJES, e também do Rotary Club - com financiamento. Mas qualquer pessoa ou empresa pode ajudar.
Agora, por exemplo, Jucileia busca patrocinadores que topem colaborar com verbas, cestas básicas e materiais para confeccionar os bolos. Para ajudar, basta ligar para a ONG Win através do número (27) 99730-3300. Esse recurso servirá para auxiliar não só Jucileia, como para outras mulheres que participam do projeto.
Jucileia Santos Ribeiro
Empreendedora
"Onde moro, em Vila Velha, vejo muitas mulheres e meninas que não conhecem esses projetos. Minha ideia é ir cada vez mais até elas e fazer a conscientização de que os relacionamentos abusivos não são bons para ninguém, que elas não precisam disso. Quero passar tudo que aprendi, para que elas tenham uma profissão e saiam do ciclo de violência, além de auxiliá-las para que essas mulheres saibam quais órgãos procurar. Mas para isso, precisamos de muito apoio para materiais, cestas básicas, fornos e etc"
AÇÃO SOCIAL PARA AJUDAR VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA EM VILA VELHA
Decidida a fazer a diferença, Jucileia já marcou a primeira ação social que fará em apoio às vítimas de violência. Com a ajuda do TJ e da Central Única das Favelas (CUFA-ES), no próximo sábado (8), ela fará visitas a mulheres agredidas que conseguiu identificar na região da Praia dos Recifes, em Vila Velha.
A boleira fará panfletagens informando como conseguir ajuda, fará doação de cestas básicas para as vítimas darem o primeiro passo da independência e apresentará o projeto dos bolos, para que elas aprendam uma profissão. A ação está prevista para ter início às 9 horas e o ponto de partida será no mural sobre violência doméstica que fica na Rua Das Marinhas.
"Muitas mulheres não possuem forças para pedir ajuda ou ficam perdidas nesse momento, então vamos até elas. Quero mostrar que elas não estão sozinhas e apresentar o caminho para a recuperação, o que fazer, os órgãos para procurar ajuda. É a minha primeira ação social e espero fazer outras. Então toda ajuda é bem-vinda, espero conseguir mais patrocinadores para continuarmos com esse trabalho", afirma.
O agressor de Jucileia morreu após ser atropelado em Vila Velha por um carro, em 2016, e sofrer complicações na recuperação do acidente. Acamado, ele pediu perdão à vítima. A condenação dele pelas agressões só saiu após a morte, no mesmo ano.
"Eu perdoei. Já vivi muita coisa ruim, carregar ódio só faria mal a mim mesma. Mas mesmo depois de morto eu continuei sentindo medo, como se ele fosse chegar a qualquer momento. O que me ajuda a superar, até hoje, é o projeto com os bolos e o apoio psicológico. Estou me desconstruindo e reconstruindo a cada dia".
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