Carla Valadares da Silva Souza, de 35 anos, morreu atropelada, mas não foi um acidente. Ela tentava escapar do ex-marido com quem havia discutido. Ao tentar pedir ajuda em uma unidade do Corpo de Bombeiros, foi atingida pelo veículo conduzido por Adilon Roberto de Souza, de 43 anos, que a perseguiu por todo o caminho.
O caso aconteceu em Guaçuí, na Região do Caparaó, na tarde desta quinta-feira (28). Pouco dias antes, a polícia havia encontrado o corpo de Roseli Valiati Farias, morta com um tiro na cabeça por um homem com quem tinha começado a se relacionar depois da morte do marido por Covid-19.
A vendedora de 47 anos foi assassinada no dia 17 deste mês, em Cachoeiro. Com o suspeito, Alexandre Vaz Nunes, de 54 anos, a polícia encontrou pendrives com informações de mais de 200 mulheres que ele conhecia pela internet.
Carla e Roseli integram a lista de pelo menos 29 casos de feminicídio ocorridos só este ano no Espírito Santo. O número já supera o de todo o ano passado, quando 26 mulheres perderam a vida em crimes relacionados a gênero, ou seja, foram mortas por serem mulheres.
Segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp), até setembro deste ano o Estado teve 25 ocorrências de feminicídio. Contudo, só no mês de outubro, A Gazeta noticiou mais quatro casos, o que eleva o número, no mínimo, a 29.
Além dos casos de Carla e Roseli, outras duas mulheres foram mortas pelos companheiros.
No dia 10 de outubro, Erica de Souza Prates, 33 anos, foi esfaqueada ao sair para comemorar o aniversário. Ela morreu no hospital dois dias depois, mas não antes de revelar quem foi o autor do crime: o namorado dela, Alcimar Domingos. Ele queria dinheiro para beber mais depois da festa, ela disse não.
Ancila Viana dos Santos, de 34 anos, era estudante de técnico em enfermagem e também foi esfaqueada. O autor do crime, que aconteceu em São Mateus, é o ex-namorado da vítima. Segundo colegas, a estudante reclamava do comportamento ciumento dele, e tentava se afastar, mas era perseguida.
Para a delegada Michelle Meira, gerente de Proteção a Mulher da Sesp, o aumento do número de feminicídios este ano é, em parte, reflexo da pandemia. Segundo ela, no ano passado, muitas mulheres deixaram tomar algumas decisões importantes da vida, principalmente relacionadas a questões financeiras e até término de relacionamento.
“Em 2020 houve uma redução muito grande de feminicídios em relação a 2019. Isso não reflete uma mudança de cultura, a gente sabe que a violência contra a mulher é cultural. Mas houve um fenômeno social que mulheres deixaram de tomar essas decisões sobre sair de casa e finalizar relacionamentos”, aponta.
Com a volta à “vida normal”, o número de feminicídios também retornou ao patamar anterior à pandemia de Covid-19, diz a delegada.
Essa também é a análise feita pela advogada e mestre em Direito e Garantias Fundamentais Renata Bravo. Ela ressalta que, apesar da queda no número de casos de violência doméstica na pandemia, o problema nunca foi embora. Ele só ficou ainda mais restrito aos lares. Agora, os casos têm retornado à medida que as pessoas retomam suas vidas fora de casa.
“Esses homens estão voltando à normalidade dos atos deles. O sentimento de poder ir na rua, de disputa da mulher com outro homem, fica mais aflorado. Pode ser que esse aumento seja em decorrência do retorno das atividades fora de casa”, avalia.
Bravo lembra que o feminicídio é a ponta final de uma cadeia de violências sofridas pelas mulheres. Ela aponta que para mitigar essa questão é preciso políticas públicas amplas, já que é um crime que não se resolve simplesmente colocando mais polícia nas ruas.
“É preciso garantir a construção na sociedade de que todo mundo é responsável por denunciar essas violências. É preciso capacitação de profissionais das áreas pública e privada para lidar com essa questão. É preciso fazer com que homens e mulheres entendam que várias coisas entendidas como piadas, são violências e são o início de uma série de violências que muitas vezes terminam no feminicídio", afirma.
A mudança de cultura, principalmente através da educação, também é aposta da delegada para reduzir os casos de feminicídio. Enquanto não se consegue alcançar essa mudança de paradigma através das novas gerações, cabe ao poder público procurar políticas que sejam efetivas para a redução da violência.
“A gente tenta controlar a sociedade que a gente tem, os adultos. Mas se a gente não mudar o pensamento desses homens que estão aí, formados e feitos, não adianta”, aponta.
Ela cita como exemplo o projeto “Homem que é homem”, do governo do Estado, que consiste em um grupo de reflexão para agressores de mulheres. Porém, embora na Grande Vitória ele consiga ser desenvolvido com servidores da Polícia Civil, no interior nem sempre isso acontece, já que é necessário que as prefeituras disponibilizem os psicólogos e assistentes sociais do projeto.
“Precisamos que gestores municipais se sensibilizem e façam o termo de cooperação para disponibilizar profissionais para que isso ocorra. Porque mesmo que uma mulher consiga sair de um relacionamento violento, aquele homem agressor vai se relacionar novamente com outra pessoa e vai cometer os mesmo atos. Se não trabalhar nele a questão do machismo, ele vai continuar repetindo, porque ele não se entende como agressor, criminoso”, ressalta.
Renata Bravo completa dizendo que é preciso investir também em comunicação para que mulheres sejam informadas dos locais onde pedir ajuda, dos órgãos que podem acolhê-las e até mesmo saber identificar os casos de abuso que possam acontecer.
“Nem todo mundo tem acesso à internet, à informação. E ainda para quem tem, é difícil saber onde buscar ajuda e se sentir segura. A proteção e orientação de mulheres, e a repressão e orientação de homens têm que caminhar juntas”, avalia.
COMO PROCURAR AJUDA
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- Caso a violência esteja ocorrendo naquele momento: disque 190.
- Se quiser denunciar comportamentos violentos na sua casa ou de outra pessoa: disque-denúcia 180.
- Caso tenha sofrido violência: procure a Delegacia de Plantão Especial da Mulher da Região Metropolitana (PEM): (27) 3323-4045. Endereço: R. Hermes Curry Carneiro, 350 - Ilha de Santa Maria, Vitória. Funcionamento 24 horas.
- Se não for moradora da Região Metropolitana: procure uma das 14 delegacias da mulher no Estado.
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