Em um dia é Neuza, no outro, Edilaine. Na semana anterior foi Carla e, na próxima, quem será? O Espírito Santo tem um histórico de violência, mas por que o Estado é marcado por tantos assassinatos brutais de mulheres? Um tiro já seria demais, porém não é raro que o ataque seja praticado com facas, pedras e paus, que prolongam o sofrimento e a dor até a morte. Em 2021, o número de feminicídios - crimes motivados por violência doméstica ou por discriminação de gênero - já é superior a todo o ano passado.
No centro dessa questão, aspectos adquiridos de outras culturas foram determinantes para a formação da sociedade capixaba, que carrega a violência contra a mulher como uma característica decorrente do patriarcado - sistema social em que os homens detêm o poder.
CONSTRUÇÃO SOCIAL E CULTURAL
Maria Beatriz Nader, professora do Departamento de História e coordenadora do Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), observa que grupos sociais que se instalaram no Estado no século XIX e ajudaram a construir a cultura local, tais como alemães, italianos, açorianos e árabes, têm um perfil fortemente baseado no patriarcado, em que o homem é quem tudo determina na relação com a mulher e tem o domínio sobre o que ela pode ou não fazer.
Essa cultura, que passa de geração em geração, perpetua a ideia de que a mulher não tem direitos, nem vontades. Assim, quando muitas delas se veem numa situação de violência ou, por qualquer outra razão, decidem se separar dos companheiros, são perseguidas, agredidas e mortas. Esses homens enxergam as mulheres como propriedade, e acreditam que têm poder de decidir sobre a vida e também sobre a morte delas.
Maria Beatriz Nader
Coordenadora do Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência da Ufes
"A ideia é de que as mulheres são donas de casa e os homens, os donos da casa"
E esse contexto é tão perverso que muitas mulheres também o reproduzem. "As mulheres que repassam a cultura machista para seus filhos são joguetes do patriarcado, ou seja, o sistema as convence de que são responsáveis pela manutenção da cultura, da educação dos meninos como homens que não devem se deixar fraquejar nunca, uma vez que são eles os responsáveis pela família", exemplifica Maria Beatriz.
DESEJO DE CASTIGAR
Coordenadora do Laboratório de Pesquisas sobre Violência contra a Mulher e presidente da Comissão Permanente de Direitos Humanos da Ufes, a professora Brunela Vicenzi reforça que o patriarcado mantém a visão de que o homem é o centro de tudo e que tem poder sobre os corpos das mulheres.
Brunela Vicenzi
Coordenadora do Laboratório de Pesquisas sobre Violência contra a Mulher da Ufes
"Há um sentimento muito forte de punição, de decidir se a mulher merece viver ou não. Temos muito essa percepção do desejo (do homem) de castigar; ele quer penalizar por alguma coisa, muitas vezes banal"
Por vezes é uma roupa considerada curta, em outras situações, a vontade da mulher de trabalhar. Independentemente do cenário que se apresenta, ressalta Brunela, nada é justificativa para a violência.
O desejo do homem de punir muitas vezes se traduz em crimes brutais, como no caso de Edilaine Bernardo Franco, 30 anos, esfaqueada dentro de um carro, sem possibilidade de escapar, e na frente dos filhos de 2 e 5 anos, no último sábado (6), em Guarapari. O assassinato diante das crianças é outro componente de crueldade.
"É algo que me chama atenção essa falta de pudor, de preocupação com as crianças que havia até um tempo atrás, e parece não existir mais. Acredito que é mais uma tentativa de dizer: 'eu que mando nessa família toda'. E matar na frente dos filhos torna isso mais evidente", analisa Brunela.
VIOLÊNCIA MAIOR EM 2021
Além da brutalidade dos recentes casos registrados, o número de feminicídios cresceu em 2021. Dados da Gerência do Observatório da Segurança Pública (Geosp), vinculada à Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp), apontam que, de janeiro a outubro, 30 mulheres foram assassinadas em episódios de violência doméstica e de gênero, enquanto em todo o ano de 2020 foram 26 mortes.
A análise da Geosp indica ainda que a violência contra a mulher, especialmente a praticada no âmbito familiar, apresentou maior incidência em 2017, quando 32% dos casos de homicídios com vítima do sexo feminino foram qualificados como feminicídios. Em 2021, esse índice já chegou a 31% em 10 meses.
Mesmo com o aumento de casos, o secretário estadual da Segurança Pública, coronel Alexandre Ramalho, sustenta que esta condição não é uma exclusividade do Espírito Santo, e que outros Estados também estão registrando alta incidência de feminicídio e homicídio de mulheres.
IMPUNIDADE
Para Renata Bravo, mestra em Direitos e Garantias Fundamentais e idealizadora do coletivo Juntas e Seguras, o sentimento de impunidade em episódios de violência contra a mulher é notório, demonstrando o total desprezo dos agressores em relação às vítimas, o que contribui para os frequentes casos de feminicídio.
O caso da doméstica Neusa Ribeiro Santos, enganada com os pedidos de perdão de seu algoz, é um exemplo, na opinião de Renata. O acusado do crime, um produtor rural de 42 anos, a tirou de perto dos filhos, que eram a proteção da mãe, para morar com ele. Da nova casa, Neusa saiu para o hospital inconsciente de tantas agressões na cabeça e, no fim de semana, morreu.
Renata avalia que, embora o Estado tenha importantes políticas públicas de prevenção à violência contra a mulher e que o problema não é exclusivo do Espírito Santo, os investimentos para combater esse crime têm que ser contínuos e maiores. Uma estratégia significativa, aponta a especialista, é o projeto "Homem que é Homem", conduzido pela Polícia Civil.
Trata-se de uma iniciativa voltada a agressores com inquéritos em andamento em Delegacia da Mulher. São promovidos encontros no formato de grupo reflexivo, com discussões sobre relação de gênero, desconstrução de ideias sexistas e machistas, estímulo a formas pacíficas de lidar com conflitos, entre outros temas que visam conscientizar o homem sobre a cultura de respeito e não violência.
Renata Bravo considera que a proposta de reflexão do projeto é essencial porque não é de uma hora para outra que a mudança vai acontecer, mas, do mesmo jeito que se constrói a violência, pode haver a desconstrução.
Renata Bravo
Mestra em Direitos e Garantias Fundamentais
"É preciso que esses homens se reconheçam como agressores e mudem de atitude. Gritar, querer controlar a roupa da mulher, cenas de ciúme, por exemplo, são atitudes muito naturalizadas na nossa sociedade e precisam ser rompidas "
Atualmente, segundo a Sesp, 17 municípios desenvolvem o projeto - Vitória, Vila Velha, Serra, Cariacica, Viana, Guarapari, Linhares, Cachoeiro de Itapemirim, Marataízes, Aracruz, Colatina, Montanha, São Gabriel da Palha, Castelo, São Mateus, Jaguaré, Mimoso do Sul - e outros oito estão em negociação com o Estado. Apenas 5% dos participantes reincidiram no histórico de violência doméstica após passar pelo "Homem que é Homem."
INTERIORIZAÇÃO
A importância de expandir o projeto para além dos limites da Região Metropolitana é que a violência não está mais concentrada nos grandes centros, mas está se interiorizando. "Tanto os homicídios contra mulheres quanto os feminicídios cresceram muito no interior", constata o secretário estadual da Segurança Pública, coronel Alexandre Ramalho.
No mês passado, Carla Valadares da Silva Souza, 35 anos, passou a integrar essa estatística, que reúne 26 feminicídios no interior e quatro na Grande Vitória, de janeiro a outubro de 2021. Ela morreu atropelada ao tentar escapar do ex-marido, com quem havia discutido. Adilon Roberto de Souza, que depois foi preso, a perseguiu por ruas de Guaçuí, na Região do Caparaó.
Como a demanda pelo enfrentamento da violência contra a mulher aumentou, a parceria com as prefeituras, ressalta o secretário, é fundamental para oferecer a estrutura necessária de atendimento, com psicólogo e assistente social, além dos policiais. Alexandre Ramalho avalia que os municípios com Gabinete de Gestão Integrada também conseguem melhores resultados no enfrentamento ao colocar a segurança pública em discussão.
Assim como as especialistas, o coronel Ramalho considera que a violência contra a mulher é resultado do machismo ainda bastante impregnado na sociedade, em que o homem acredita que tem a posse da companheira. "Muitas vezes ele reproduz um modelo que vivenciou em casa, vendo a própria mãe ser agredida quando falava algo que desagradava o pai, por exemplo. Esse modelo vem se perpetuando e ele nem sempre se enxerga violento. O projeto ("Homem que é Homem") tenta ressocializar esse indivíduo que sempre viveu nessa cultura machista", argumenta.
Além desse grupo reflexivo, o coronel Ramalho pontua outras iniciativas que vêm sendo adotadas a partir da primeira gestão de Renato Casagrande, como a Patrulha Maria da Penha, com visita à casa de mulheres que têm medida protetiva contra agressores; a criação de delegacia especializada em homicídios contra mulher; a gerência na Sesp que analisa esses dados e propõe ações; e, mais recentemente, o aplicativo SOS Marias, em que uma vítima pode acionar a polícia com apenas um toque no celular.
O QUE MAIS PODE SER FEITO
A mudança de uma cultura machista e violenta contra as mulheres, afirmam as especialistas, passa necessariamente pela educação das crianças e adolescentes para que cresçam com outra mentalidade nas relações de gênero e para resoluções de conflito. No entanto, não é possível esperar as novas gerações crescerem para que o feminicídio se torne apenas um dado histórico. São necessárias medidas que também provoquem uma transformação nos adultos de hoje.
Na opinião de Brunela Vicenzi, campanhas e investimento do Estado e das prefeituras não deveriam focar apenas na Lei Maria da Penha, indicando onde recorrer em caso de violência. É preciso apostar, segundo ela, em ações preventivas e de formação, como de professores, policiais e autoridades - uma ação direcionada a homens para desconstruir essa cultura patriarcal. "Estão sempre atacando as mesmas coisas. É preciso ter um olhar diferente para enfrentar o problema", justifica.
Para Maria Beatriz Nader, a sociedade civil também tem responsabilidade e a professora cita as igrejas, convidando as lideranças religiosas a se envolverem, promovendo uma pregação de amor ao próximo, de compaixão e empatia. "Penso que poderiam contribuir com uma palavra que não vai dirigir ódio ao outro. A mudança cultural é difícil, mas não é impossível e todos podem ajudar", conclui.
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