O colega de trabalho, o vizinho de porta, o amigo da família ou até os próprios parentes. Diferente do que se costuma imaginar, a maioria dos estupros não é cometido por maníacos que atacam à noite em um beco escuro. Os agressores sexuais muitas vezes são pessoas comuns, próximas das vítimas.
Essa foi uma das observações feitas pela jornalista e apresentadora do Bom Dia Brasil Ana Paula Araújo durante o processo de pesquisa para o livro "Abuso – A cultura do estupro no Brasil", lançado recentemente pela Globo Livros.
"Entrevistei vários agressores, de jovens a pessoas de mais idade, profissionais, pais de família. Inclusive, na cadeia muitos ainda recebem visitas das esposas, mesmo depois de muitos anos e mesmo quando condenados por inúmeros estupros. Acho que não tem muito um perfil. Existe o maníaco que ataca no meio da rua, claro, mas o que mais tem é o que ataca dentro de casa. Que escolhe a vítima menor de idade, mais fácil de dominar", conta.
A jornalista fez mais de cem entrevistas com vítimas de violência sexual e seus familiares, criminosos, juízes, desembargadores, psiquiatras, psicólogos e outros especialistas.
Analisando casos famosos e anônimos, Ana Paula aborda ainda os inúmeros gargalos que fazem com que esses crimes nunca cheguem às autoridades. Quando chegam, em muitas ocasiões, a vítima só encontra descaso, deboche, despreparo e quase nunca a punição para os agressores.
O termo cultura do estupro é, às vezes, mal compreendido. Do que você fala quando trata dele no seu livro?
Basicamente são comportamentos da sociedade que justificam e quase legitimam o ataque sexual, especialmente contra as mulheres. Quando se diz que “homem é assim mesmo” ou que “a mulher tem que se dar ao respeito”, quando se tem a ideia completamente equivocada de que as roupas de uma mulher e a atitude dela podem induzir a esse tipo de crime, são mecanismos que acabam inocentando os estupradores, jogando a culpa nas vítimas.
De que formas a cultura do estupro se manifesta na vida das mulheres?
Desde pequena isso é colocado na cabeça das mulheres. Meninas ouvem que têm que se comportar, que para os meninos é legal sair ficando com todo mundo, já elas precisam ser mais recatadas. Esse tipo de pensamento cria uma diferença entre a sexualidade de meninos e meninas, de homens e mulheres, e acaba produzindo no fim essa ideia de que os homens podem ter um certo domínio sobre o corpo das mulheres, que eles podem mandar no comportamento delas. O triste é ver que mulheres também acabam incorporando isso. As próprias mulheres têm que se policiar para não reproduzir essa mentalidade de que a vítima de estupro sempre tem uma parcela de culpa. Peguei muitos depoimentos de mulheres que criaram coragem para denunciar e se depararam com aqueles questionamentos, seja na polícia, na Justiça, seja na rede de saúde: “você tem certeza?”, “você não pensa que vai acabar com a vida desse homem?”, “será que você não facilitou?”. É uma pressão muito ruim sobre as mulheres.
Você entrevistou centenas de vítimas de violência sexual. Essas mulheres tinham algo em comum?
Não havia padrão das vítimas. Elas tinham todas as idades, classes sociais e profissões. Mas havia um padrão de sentimento. Todas tinham muita vergonha, se sentiam muito culpadas. Desde as que são mais bem resolvidas com o assunto, que superaram, como as que vivem as consequências do trauma até hoje. Noto esse sentimento de culpa, de vergonha, inclusive em mulheres que foram violentadas quando crianças e, na época, nem sequer tinham noção do que estava acontecendo.
Os agressores, que você teve a oportunidade de entrevistar, também têm o perfil tão diverso?
Há uma visão de que o estuprador é o bandido no meio da rua, que sai de trás do matagal, de noite, e pega a pessoa desprevenida. Mas o que acontece é que a maioria dos estupros acontece dentro de casa. Entrevistei vários agressores, de jovens a pessoas de mais idade, profissionais, pais de família. Inclusive, na cadeia muitos ainda recebem visitas das esposas, mesmo depois de muitos anos e mesmo quando condenados por inúmeros estupros. Acho que não tem muito um perfil. Existe o maníaco que ataca no meio da rua, claro, mas o que mais tem é o que ataca dentro de casa. Que escolhe a vítima menor de idade, mais fácil de dominar. De modo geral, podem ser pessoas que estão circulando no meio da gente, que trabalham, andam de transporte público, vão ao supermercado, e eles se acham no direito de cometer esses crimes.
Eles recebem algum tipo de tratamento nas cadeias para impedir que voltem a estuprar quando soltos?
Não recebem nenhum tratamento. Tinha uma iniciativa bacana que já até acabou por falta de verba. O Tribunal de Justiça de São Paulo fez um programa para abusadores de transporte público. Todos aqueles que eram flagrados tinham a opção de reduzir a pena assistindo palestras sobre violência de gênero, direitos das mulheres e outras coisas básicas que todo mundo tinha que saber. Nesses casos, a taxa de reincidência foi zero. Claro que eles podem simplesmente não ter sido flagrados, mas não deixa de ser um bom presságio. Dentro da cadeia não existe isso. Existe, na verdade, a segregação porque os outros criminosos têm muita raiva deles, e qualquer rebelião na cadeia eles são os primeiros a serem assassinados ou agredidos.
Eles entram abusadores e saem abusadores, então...
Entrevistei alguns que haviam sido presos mais de uma vez. Um deles estava preso pela terceira vez pelo crime de estupro. Ele cometia os crimes, era preso e, quando saía, fazia de novo.
Voltando a falar das vítimas, quais são os gargalos que elas encontram quando vão buscar ajuda?
O primeiro é a culpa da vítima. Elas ficam com tanta culpa que a maioria não denuncia. Apenas 10% dos casos de estupros chegam à polícia. Então, aí já é o primeiro e gigante gargalo. As pessoas não denunciam por achar que não têm como provar ou por achar que não dá em nada, e muitas vezes não dá em nada mesmo. Na polícia, é muito comum as mulheres encontrarem descrédito por parte dos policiais. São raros os locais com Delegacia da Mulher, onde ela encontra um atendimento mais acolhedor. Não é raro que ela seja desacreditada, desestimulada a fazer a denúncia, que seja tratada até com deboche, com ironia. Então, muitas desistem ali e, mesmo quando ultrapassam isso, bancam a denúncia, a polícia praticamente não investiga. Nos casos de assassinato no Brasil, o índice de investigação já deixa a desejar. Imagine um crime de estupro, que não é tão combatido, que não tem tantas provas.
Os serviços de saúde também são um problema?
Na rede de saúde, a primeira questão é que muitas mulheres ficam com vergonha de ir e demoram a buscar atendimento. Quando vão, às vezes já está tarde para tomar uma pílula do dia seguinte. Outros tratamentos para doenças sexualmente transmissíveis também precisam ser administrados em pouco tempo e, quanto mais demora, menor a eficácia. Se a partir do atendimento de saúde ela quiser coletar provas para um processo judicial, dependendo do tempo, não consegue. Apesar de haver regra do Ministério de Saúde sobre fornecimento de protocolos em caso de estupro, muitos locais não têm nem o conhecimento sobre o protocolo, dificilmente encaminham para um lugar onde ela terá um atendimento adequado. Quando é caso de gravidez decorrente de estupro... Vimos nos casos recentes a dificuldade que é encontrar no Brasil um hospital que faça o que diz a lei.
Esses gargalos também continuam no Judiciário?
Na Justiça, elas têm dificuldade de provar porque é um crime que muitas vezes não deixa provas. Uma das provas possíveis seriam marcas de luta, mas muitas vítimas paralisam na hora do ataque, então não têm marcas. Fica a palavra da vítima contra a do agressor. O que permeia tudo isso também é o machismo da sociedade que está presente nas instituições. Então, em uma sociedade machista, a gente vai ter o juiz machista, o policial machista, o médico machista. Acho que é um percentual ínfimo de caso que há de fato uma condenação do estuprador. Pelo que eu entrevistei nas cadeias, acho que só vão mesmo para cadeia aqueles casos de psicopatas, de pessoas que atacam no meio da rua, ou casos de padrasto ou pai denunciados, que alguém na família flagra e resolve denunciar. Não entrevistei um estudante universitário e são muitos casos denunciados de estupro dentro das universidades, em festas. Não encontrei um de idade universitária, de classe mais alta. As famílias abafam, não denunciam, não procuram a polícia.
Do seu ponto de vista, por onde passa a solução para esses problemas?
Passa pela educação, em todos os níveis, desde as crianças aprenderem mais sobre respeito, entenderem o que é violência de gênero, porque é importante para homens e mulheres que isso seja combatido. Até a educação de nós, adultos, nas instituições. Falta uma formação melhor dos nossos policiais, médicos, autoridades judiciárias para lidarem um pouco melhor com o tema. Está muito enraizado na maneira como criamos meninos e meninas. Mas eu vejo que a geração da minha filha, que tem 14 anos, já pensa completamente diferente. Acho que a mudança virá a partir de agora. É aos poucos, é lenta, mas já consigo ver isso acontecendo.
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