Em 19 de novembro é celebrado o Dia da Mulher Empreendedora. E em 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra. Juntas no calendário, as datas andam em parceria também historicamente. Ao longo do tempo, as mulheres pretas encontraram no empreendedorismo não apenas uma forma de bancar, mas também custear a sua liberdade. Eram as chamadas "pretas de ganho", mulheres escravizadas ou já libertas que trabalhavam no ganho de rua ou em pequenos comércios. Elas, que vendiam cocadas e quitutes, podem ser vistas como as pioneiras do espírito empreendedor feminino – e especialmente afro-brasileiro. E o Espírito Santo tem representantes nesse grupo que são símbolos de resistência.
Segundo dados de 2023 da Global Entrepreneurship Monitor (GEM), o Brasil está em 8º lugar na lista de países com mais empreendedores do mundo. Deste número, 40,2% são mulheres e, desse percentual, 53,6% são pretas. Além disso, um estudo realizado pela Rede Mulher Empreendedora, de 2021, ressalta que 55,5% dos novos negócios criados durante a pandemia da covid-19 foram abertos por mulheres. E 45% das entrevistadas realizaram algum curso de formação para se tornarem empreendedoras. Essa mesma porcentagem – 45% – é atribuída a empresas que empregam majoritariamente pessoas do sexo feminino.
Além de todas as adversidades e dos desafios às quais foram expostas, como o machismo, a misoginia e a dupla jornada, essas mulheres também tiveram que conviver e enfrentar o racismo. Conheça a história de nove capixabas pretas que foram ou ainda são protagonistas na história como empreendedoras e símbolos de resistência. Seus nomes e suas trajetórias estão marcados em favor do direito de existir enquanto cidadãs.
EMPREENDEDORAS
Maria Saraiva
Doceira do século 19, Maria Saraiva se estabeleceu ainda antes da abolição da escravatura. Por volta de 1875, vendia seus doces em um ponto fixo na Rua General Osório, no Centro de Vitória, local onde morava. Os quitutes ficaram tão famosos que, em dias de celebração religiosa, ela negociava suas encomendas no entorno da igreja. Muitos dos doces eram criações próprias e faziam sucesso até entre a alta sociedade da época.
Ex-escravizada, Maria é uma das poucas mulheres e ainda uma das poucas pessoas que estiveram em situação de cativa a ser homenageada como nome de rua na Capital. Ela morreu em 1912 e foi sepultada no Cemitério de Nossa Senhora da Boa Morte, no bairro de Santo Antônio.
Zilda Antônia de Aquino
É a dona de um dos bares mais populares e tradicionais de Vitória, localizado no Centro. O Bar da Zilda se localiza justamente na rua Maria Saraiva. A empreendedora nasceu em Colatina, no Noroeste do Espírito Santo, e chegou à Capital quando tinha 17 anos. Trabalhou como empregada doméstica e como recepcionista até que, em 1996, o marido comprou um bar e ela passou a ajudá-lo na organização do estabelecimento. Um ano depois, o marido morreu e coube a ela administrar o empreendimento.
O bar que hoje leva o seu nome é referência na região. Reúne diferentes públicos, é conhecido pelas comidas de boteco e, principalmente, por movimentar as noites capixabas com um bom samba.
Maria "Tomba Homem"
Foi dona de um bar que também fazia as vezes de casa noturna no início do século passado, na Ilha do Príncipe, em Vitória. Maria militava em favor das causas feminina e negra, ainda que fosse marginalizada. O apelido teve origem no fato de ela ter uma postura impositiva contra os homens que desrespeitavam as meninas que trabalhavam no seu estabelecimento e por não tolerar nenhum tipo de violência. Quem tentasse alguma coisa certamente seria "tombado" por ela.
Tomba Homem era considerada uma figura de autoridade dentro e fora de seu bar e ficou conhecida por manter a ordem na região. Isso fez com que ela virasse uma personagem popular, sendo inclusive enredo da escola Pega no Samba, no Carnaval de Vitória em 1986, sendo reeditado em 2007.
SÍMBOLOS DE RESISTÊNCIA
Dona Domingas
Neta de pessoas escravizadas, Domingas não era conhecida por sua fala, mas por sua presença. Ela não conversava, nem sorria. Catava recicláveis pela cidade e, enquanto caminhava, espantava com um pau os cachorros. Apesar de alguns relatos a retratarem como "mendiga" ou "pedinte", ela não morava na rua, nem pedia nem aceitava ajuda. Vivia à base do que vendia como catadora de papel, no pós-Abolição. Falava com poucas pessoas e vivia de cabeça baixa, reflexo da opressão a qual viveu quando ainda era escravizada. Por andar sempre na mesma região, acabou se tornando referência. Morava no bairro de Santo Antônio e catava papel e papelão na Praça Costa Pereira, sempre em Vitória.
O escultor italiano Carlo Crepaz produziu uma escultura de Domingas e há outras seis cópias, sendo uma no Museu de Belas Artes, do Rio de Janeiro. O artista teria sido pago pelo trabalho e ela, que serviu de modelo, não. Uma das imagens fica localizada aos pés do Palácio Anchieta, no Centro de Vitória. Por conta da escultura, Domingas chegou a ser conhecida como “Pietà do Lixo”, em uma referência à obra do italiano Michelangelo, que representa Jesus morto nos braços de sua mãe e fica exposta na Basílica de São Pedro, no Vaticano. Domingas morreu em um dia de tempo chuvoso e foi enterrada como indigente, em 1966. A igreja de Santo Antônio recebeu seu corpo.
Verônica da Pas
O Museu Capixaba do Negro (Mucane), situado no Centro de Vitória, leva o nome de Verônica da Pas, como homenagem à mulher que foi a primeira coordenadora da instituição, da qual esteve à frente até sua morte, em 1996. Nascida em Itabira (MG), em 1948, Verônica foi psiquiatra, ativista antirracismo e precursora do feminismo negro no Espírito Santo. Quando fundado, o Mucane foi o primeiro museu dedicado ao povo afrodescendente no Brasil. Desde então, tornou-se um centro de referência para a cultura e visibilidade de artistas e produtores negros bem como da população negra capixaba.
Zacimba Gaba
Princesa africana da nação de Cabinda, no norte de Angola, foi uma figura marcante na história da resistência negra no Brasil. Líder corajosa, ela lutou contra as invasões portuguesas ao lado de seu povo, mas acabou capturada e trazida para o Brasil em 1690, junto com alguns de seus súditos. Vendida como escravizada ao fazendeiro José Trancoso, Zacimba arquitetou sua vingança, envenenando-o gradualmente com um pó preparado a partir da cabeça moída de uma jararaca – conhecido como "pó de amansar sinhô". Após a morte de Trancoso, Zacimba liderou uma rebelião, ordenando a invasão da Casa Grande.
Os torturadores foram eliminados, enquanto a família do fazendeiro foi poupada. Em seguida, ela guiou seu povo em uma fuga estratégica pela fazenda, enfrentando os capatazes em combate. Como desdobramento de sua luta, Zacimba fundou um quilombo às margens do riacho Doce, no atual município de Conceição da Barra, no Norte do Espírito Santo. Determinada a continuar sua busca por liberdade, Zacimba Gaba morreu como uma guerreira, durante a invasão de um navio português, lutando pela libertação do povo de Cabinda. Sua história permanece como símbolo de resistência e coragem.
Constância D'Angola
Foi escravizada na Fazenda Boa Esperança em São Mateus, no Norte do Estado, por volta de 1880. Constância teve seu bebê arrancado de suas mãos e assassinado ao ser jogado numa fornalha por uma das senhoras do quilombo, com a justificativa de que a criança fazia muito barulho e atrapalhava o serviço dos escravizados. Em busca de justiça num tempo de invisibilização, ela contou com o apoio de Viriato Cancão de Fogo – figura negra e capixaba iminente do século 19, que comandava um quilombo na região do Vale do Rio Cricaré, em São Mateus.
Viriato resgatou Constância da fazenda e a ensinou a se defender com facas e a lutar capoeira, algo que a fez virar um destaque e transformar-se em uma liderança quilombola.
Relatos apontam que Constância fugiu do quilombo, mas foi capturada e chegou a ficar presa. Ela foi morta em um confronto com um capitão-do-mato e levada pelos outros escravizados para ser enterrada no mesmo local em que foram deixadas as cinzas de seu filho, no Cemitério de Cachoeira do Cravo – conhecido como cemitério dos escravos – também em São Mateus. Constância D’Angola se tornou símbolo de resistência para mães pretas.
Astrogilda Ribeiro
Seguindo os passos dos pais – reis da congada –, Astrogilda Ribeiro se tornou mestre da banda de congo de São Benedito do Rosário, criada em 1798 e uma das mais antigas do país. Aos 20 anos, ela passou a liderar o grupo e passou 65 anos à frente dele. Sua história está profundamente ligada ao congo de Aracruz, no Norte do Estado, onde deu vida ao movimento na Vila do Riacho.
Assim, tornou-se a Rainha do Congo do Espírito Santo e símbolo de luta e resistência no movimento negro. Também recebeu o título de “Mestre da Cultura Popular do Espírito Santo”, dado pela Secretaria de Estado da Cultura (Secult). A vida dela inspirou um documentário realizado pela Banda Casaca, “Astrogilda, o Congo é sua Vida", de Rogério Sarmenghi. Astrogilda morreu em 2021, aos 87 anos.
Clara Maria do Rosário dos Pretos
Foi uma jovem escravizada que teria aprendido a ler junto com os brancos, razão pela qual passou a participar de movimentos abolicionistas junto a fazendeiros e intelectuais. Dessa forma, Clara agia como elemento de ligação entre os negros escravizados e/ou aquilombados e os abolicionistas, sendo um dos nomes importantes da luta antiescravagista do Vale do Cricaré, entre os municípios de São Mateus e Conceição da Barra, no Norte do Estado.
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