Mapear como gênero, raça e outros grupos são representados na publicidade. Esse é o objetivo da pesquisa TODXS, realizada desde 2015, em parceria com a ONU Mulheres e com a Aliança Sem Estereótipos.
Coordenado pela publicitária, estrategista e pesquisadora há mais de 20 anos, Isabel Aquino, o estudo será abordado na 1ª Mostra do CineMarias - Corpo é Território, que acontece entre os dias 1º e 3 de setembro, no Cine Metrópolis, na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Em um bate-papo sobre os avanços e desafios ao longo de sete anos de mapeamento das publicidades, Isabel revela para A Gazeta que a representatividade de mulheres e homens negros, comunidade LGBTQIA+ e deficientes físicos estagnou, de acordo com os resultado das três últimas publicações.
Quando e como começou a pesquisa TODXS?
Para mim, tem um marco muito importante. No Carnaval de 2015, a Skol lançou uma campanha publicitária no qual falava “neste carnaval, deixe o 'não' em casa”. Duas meninas viram essa publicidade e ficaram indignadas. Elas fizeram uma intervenção no mobiliário urbano como uma resposta a essa campanha. No caso, escreveram “deixe o 'não', e leve o 'nunca'”. Na época, elas postaram nas redes sociais e, no dia seguinte, tinha milhares de compartilhamentos no Facebook. Semanas depois, a Skol tirou a campanha do ar.
Isabel Aquino
Coordenadora da pesquisa TODXS
"Foi o primeiro movimento da internet que derrubou uma campanha publicitária de televisão. A Skol, umas das maiores marcas de cerveja, tirou do ar uma campanha em pleno carnaval, que é um dos períodos de maiores vendas do ano, para substituir por qualquer coisa. "
Por que esse ato foi tão importante?
As discussões de empoderamento feminino já estavam avançando, mas foi um recado para que as marcas refletissem: ‘’Precisamos pensar sobre o posicionamento da mulher”. Na época, eu trabalhava em agência, participava de fóruns, etc. E, apesar de a discussão avançar, faltava embasamento. A pesquisa nasceu para entender que existe um problema e que ele precisa ser quantificado. Quando a gente olha para a evolução dos dados, mostra que a gente estava num período crítico. Em 2015, apenas 1% das publicidades tinha mulheres negras como protagonistas, por exemplo.
O que a pesquisa se propõe a responder?
A pesquisa quer responder três perguntas básicas: Quem são os protagonistas dessas publicidades? Como eles são representados? O biotipo, por exemplo… E se a narrativa que é contada empodera ou esteriotipa aquele personagem. A partir dessas perguntas, todo o estudo é constituído. Durante esses sete anos de mapeamento da publicidade, estamos na 10ª publicação, que chamamos de 10ª onda da pesquisa.
Durante esses anos, as pesquisas apontam avanços na representatividade de mulheres e homens negros nas narrativas das publicidade? Quais?
Percebemos avanços, sim. Hoje tem 27% mulheres negras sendo protagonistas nas publicidades. No entanto, esse número ainda é pouco quando se trata de equidade. Mas é muito melhor do que quando comparamos com o cenário de 2015, quando era apenas 1%. Quando se trata de homens, temos a representação de 20% em comerciais, que também é pouco.
Isabel Aquino
Coordenadora da pesquisa TODXS
"Vale lembrar que a população negra no Brasil corresponde a 54% das pessoas. Ou seja, esses números, apesar de terem melhorado nesses sete anos, ainda está muito longe do ideal. Outra mudança que percebemos é que hoje o cabelo crespo é mostrado de forma mais consistente."
Na sua opinião, o que promoveu essas mudanças?
Foi um amadurecimento das marcas e do público, e isso foi fazendo com que as agências revisitassem seus públicos. É resultado de uma discussão que foi crescendo. As marcas foram progredindo com as questões da sociedade, se atentando às exigências do consumidor. Por outro lado, a juventude também veio forte, cobrando um posicionamento. Além disso, trata-se de uma questão econômica. Essa adequação e amadurecimento foi imprescindível para que a marca se mantenha no mercado.
Isabel Aquino
Coordenadora da pesquisa TODXS
"Outro fator que vale destacar é que a técnica publicitária nos últimos anos saiu de um padrão aspiracional, no qual as campanhas diziam que as pessoas tinham sonhos, desejos, aspirações, para um padrão no qual, hoje, as pessoas querem se ver representadas."
Alguma publicidade marcou essa mudança de técnica publicitária no Brasil?
Esse é um movimento que acontece não só no Brasil, mas na América Latina, nos Estados Unidos, em todo o mundo. Aqui, podemos destacar a campanha do Dia dos Pais do Boticário, em 2018. A marca foi a primeira a mostrar uma família toda negra em um comercial. Naquele ano, essa publicidade bateu recorde de engajamento, comentários e likes. Em meio a isso, o Boticário também recebeu muitas críticas negativas, como, por exemplo, pessoas perguntando se a marca vendia só para negros. Mas as críticas construtivas se sobressaíram, e o Boticário teve um acréscimo no varejo de 13%. Isso é muita coisa para uma marca que tem mais de cinco mil lojas no país.
Como está a situação da representatividade da publicidade brasileira atualmente?
Por mais que a gente tenha avançado, hoje percebemos uma estagnação. Há três ondas da pesquisa, os números são bem parecidos quando se trata de representação racial. Além disso, percebemos que boa parte do conteúdo de publicidade continua esteriotipando, das mais velhas formas, o padrão de beleza feminino, principalmente. Em termos de corpo feminino, não conseguimos avançar muito. A mulher continua sendo retratada como branca, magra e de cabelos lisos. E ainda colocamos muito a mulher em papéis e profissões que esperamos delas, como se ela se limitasse a isso.
E no caso do LGBTQIA+ e os deficientes físicos?
Há cerca de três anos, incluímos os grupos LGBTQIA+ e os deficientes físicos. Percebemos que eles são grupos sub-representados. Naturalizamos olhar para esse público em datas específicas, apenas quando eles não se veem representado ao longo do ano.
A pesquisa analisa a publicidade infantil?
Sim. No caso infantil, é um dos recortes mais emblemáticos. Vemos a construção de um mundo cor de rosa para as meninas, passivo e preocupado com a beleza. Já para os meninos é um universo de aventura e engravatado.
Qual o problema da marca não se atentar a essa exigência do consumidor que quer se ver representado?
Não dá mais pra ser neutro. As marcas que não se posicionam estão fadadas a desaparecer. Elas perdem a oportunidade de dizer algo, de falar algo e passam a imagem de antipática, antiquadas. Muitas, com medo de se posicionar, ficam em cima do muro. Não empoderam nem estereotipam.
Isabel Aquino
Coodenadora da Pesquisa TODXS
"Um exemplo de como a marca perde o interesse do público é o da Victoria Secret’s. Teve uma época que, no Brasil, ir para o exterior e ter um hidratante dessa marca era sinal de luxo. A marca sempre foi ligada a aquelas modelos magérrimas, de cabelo liso. No entanto, uma pesquisa recente mostrou que o público vê a Vitória Secret’s como uma marca fake e antipática. Ela não fez questão de se reposicionar e o público não se viu representado. Quem não se posiciona é posicionado pelo público e, às vezes, não da forma que gostaria."
E para quem está assistindo a publicidades, como ter um olhar mais apurado para o que está vendo?
Não tem uma orientação específica, mas eu deixo uma pergunta: “Você se sente representado?”. Nesse comercial de cartão de crédito, de shampoo, de pasta de dente, você se sente representado? É assim que você se vê? É isso que no final do dia se conecta com as pessoas.
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