Crianças são vítimas invisíveis do feminicídio
Crianças são vítimas invisíveis do feminicídio. Crédito: Fernando Madeira / Arte A Gazeta

Órfãos pela violência: crianças são vítimas invisíveis do feminicídio

Cada vez mais, mulheres são agredidas e mortas na frente dos filhos, crianças que presenciam o pai ou o padrasto cometendo o crime. Os traumas ficam para sempre

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Feminicídio. Quantas vezes você leu ou escutou essa palavra? Trata-se do assassinato de uma mulher por questões de gênero, ou seja, quando a vítima é assassinada em situação de menosprezo, violência dentro de um relacionamento ou discriminação por ser mulher. Essas mortes deixam marcas profundas nas famílias e deixam vítimas invisíveis desse crime: os filhos.

Maria de Lourdes de Jesus é mãe de Daniele de Jesus Almeida, morta pelo ex-companheiro dentro de casa em Viana. Ela foi encontrada sem vida no dia 5 de julho, no bairro Nova Bethânia, em Viana, após o filho dela — uma criança de apenas quatro anos, que presenciou o crime — pedir ajuda a vizinhos.

Maria de Lourdes de Jesus

Mãe e avó das vítimas

"A inteligência dele, com quatro anos, de pular o muro para pedir socorro e ajuda para a mãe dele... Pra ele, a mãe estava viva. Mas não estava"

A guarda do menino ficou com a avó. Dona Maria de Lourdes conta que o neto ainda chora e chama pela mãe. "Esses dias mesmo eu briguei com ele e ele começou a chorar: 'eu quero ir embora pra minha casa, eu quero minha mãe'. Uma vez que os meninos pegaram o brinquedo dele, que a mãe dele comprou, ele falou 'não quebra minha motoca não, porque foi minha mãe que me deu. E minha mãe morreu'. A gente sente que ele fica triste", conta a avó .

Coordenadora do Laboratório de Pesquisa de Violência Contra a Mulher no Espírito Santo e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Brunela Vicenzi afirma que as agressões contra as mulheres estão cada vez mais escancaradas. 

"O que a gente está percebendo é que os crimes são cometidos na frente das crianças, não há mais o pudor dos homens de não agredir a mãe na frente dos filhos, e isso a gente sabe que é um trauma que vai ficar pra vida toda", explica a especialista, doutora em Direito e pós-doutora em Direitos Humanos e Estudos da Violência.

Ela aponta dois impactos imediatos diante desses crimes presenciados pelas crianças: o material e o psicológico.

"Temos o problema material, porque logo de início essas crianças vão ficar, possivelmente, sem a mãe e sem o pai ou padrasto. Então, vai ter uma falta de recursos materiais. De um dia para o outro, essas crianças podem não ter onde morar, o que comer, onde estudar... essa é uma situação imediata que terá que ser resolvida. Ao mesmo tempo, a gente tem o problema psicológico. Existem traumas indizíveis, são vários, de crianças que param de falar, crianças que se tornam violentas, entre outros", acrescenta Brunela.

Os efeitos dos feminícidios sobre os órfãos exigem um olhar mais apurado do poder público para essas vítimas, muitas vezes esquecidas das políticas de combate à violência contra a mulher.

 Vítimas invisíveis do feminicídio
Maria de Lourdes de Jesus, mãe de Daniele de Jesus Almeida, vítima de feminicídio . Crédito: Fernando Madeira

Brunela Vincenzi

Coordenadora do Laboratório de Pesquisa de Violência Contra Mulher no Espírito Santo

"O trauma vai ficar para a vida toda. Ele pode ser trabalhado, mas dificilmente é esquecido. Essas crianças têm que ser acompanhadas por um serviço adequado de psicologia, do Estado ou do município onde elas residem"

Outro caso de feminicídio que chamou atenção pela crueldade aconteceu em novembro de 2021. Mãe e filha foram assassinadas a tiros, em Vila Velha. Silvanete dos Santos Freitas tinha 38 anos, Karina Freitas tinha 20 anos.

As duas foram ameaçadas pelo ex de Karina porque o suspeito não aceitava o término da relação e descobriu que a jovem tinha começado um novo relacionamento. As ameaças foram cumpridas na manhã do dia 25 de novembro, Dia Mundial de Combate à Violência contra a Mulher, quando mãe e filha foram executadas.

Silvanete deixou três filhos, e Karina deixou uma filha — um bebê de um ano. "A menina se encontra com a avó por parte do pai. Pai não, monstro, né", diz Marlete Freitas, mãe de Silvanete e avó de Karina. Ela conta que um dos filhos de Silvanete se mostra mais abalado.  "O de 10 anos fala comigo: 'vó, eu sinto muita saudade da minha mãe e da minha irmã'."

Marlete Freitas

Mãe e avó das vítimas

"Eu quero que eles sejam pessoas de bem. Eu estou pedindo a Deus por isso, porque sem Deus nós não somos ninguém. Que eles se criem no caminho do bem, porque eles estão vivos, né...  "
 Vítimas invisíveis do feminicídio
Marlete Freitas, 60 anos, mãe de Silvanete e avó de Karina, vítimas de feminicídio . Crédito: Fernando Madeira
Mulheres vítimas de feminicídio deixaram filhos órfãos
Mulheres vítimas de feminicídio deixaram filhos órfãos. Crédito: Montagem / A Gazeta

ESTRUTURA PARA ATENDER CRIANÇAS VÍTIMAS INDIRETAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A coordenadora do Laboratório de Pesquisa de Violência Contra Mulher no Espírito Santo (Lapvim), doutora Brunela Vincenzi, chama a atenção para a necessidade de o poder público oferecer uma estrutura adequada e qualificada para o atendimento dessas crianças que são vítimas indiretas da violência doméstica.

"O Estado (poder público) precisa ter uma política específica para essas crianças. O ideal seria que, na própria autuação do crime, a polícia já indicasse para os familiares ou quem está com a guarda temporária das crianças que é necessário esse serviço de atendimento psicossocial o mais rápido possível, que elas já fossem encaminhadas para essa assistência imediatamente", afirma.

Segundo Brunela, muitos pesquisadores reforçam a necessidade de existir um espaço destinado às crianças nas próprias delegacias, principalmente nas Delegacias da Mulher, com psicólogos especialistas e assistentes sociais, para não deixar essas pequenas vítimas simplesmente na recepção enquanto os responsáveis são atendidos.

Em relação a medidas para o acompanhamento psicológico, social e econômico de crianças órfãs pelo feminicídio, a reportagem procurou o governo do Estado, por meio da Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH) para esclarecimentos, e o órgão indicou a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) para passar as informações.

 Vítimas invisíveis do feminicídio
Crianças que presenciam a violência tão próxima precisam de acompanhamento psicológico adequado. Crédito: Fernando Madeira

A Sesa informou, por meio de nota, que o Estado tem implantado, em todo o território capixaba, a "Linha de cuidados às crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violência", proposta pelo Ministério da Saúde, na qual a grande maioria das ações é desenvolvida em nível municipal. As unidades de Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e Centro de Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) também são apoios.

A Sesa descentralizou as ações de vigilância epidemiológica da violência para as regionais de saúde, bem como tem feito várias capacitações de rotina, junto à rede de atenção, proteção e cuidados.

Nessa direção, a Lei 11.147/2020 veio somar, ampliando as portas de entrada das crianças e adolescentes ao cuidado, quando determina que as instituições de ensino, conselho tutelar, saúde e assistência social sejam igualmente notificadores de violência para o SUS.

Com isso, a Sesa considera que o número de notificações reflete a amplitude desse acesso ao cuidado em saúde e não ao aumento de violência.

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