Grupos têm se formado nas redes sociais e em aplicativos para atacar mulheres
Grupos têm se formado nas redes sociais e em aplicativos para atacar mulheres. Crédito: Freepik/Montagem

Saiba o que é 'machosfera' e como identificar rede de ódio contra mulheres

Nas redes sociais, muitos homens se unem com um objetivo comum: atacar mulheres; entenda esse movimento masculinista que tem crescido no país

Tempo de leitura: 5min
Vitória
Publicado em 09/03/2023 às 10h27

Discursos que pregam a submissão feminina, que tratam parceiras como objetos de satisfação sexual e que propagam o que seriam os "homens de verdade" ganham cada vez mais espaço nas redes sociais, num ambiente popularmente chamado de "machosfera", com milhares de seguidores que compartilham ideias e um objetivo comum: atacar mulheres. 

Valeska Zanello

Professora do Departamento de Psicologia Clínica da UnB

"A gente tem uma masculinidade profundamente adoecida. Nesses movimentos, há um ressentimento muito grande que tem a ver com as mudanças sociais, inclusive com os avanços das pautas dos movimentos feministas."

Nessa masculinidade hegemônica, continua Valeska Zanello, o que se prega é uma hierarquização grande dos homens em relação às mulheres, onde se aprende que ser homem não é ser uma "mulherzinha", ou seja, demonstram repúdio às mulheres e ao universo a elas relacionado.

O problema não é recente, porém ganhou mais visibilidade nas últimas semanas após a atriz e humorista Livia La Gatto expor as ameaças que recebeu do autointitulado coach de relacionamentos Thiago Schutz. Ela havia feito um vídeo em que aparecia caracterizada como homem, dizendo frases machistas e misóginas de quem teria a masculinidade frágil.

A atriz não o cita na publicação, mas Schutz se incomodou, mandou uma mensagem para ela em que dizia "é processo ou bala". Depois da repercussão do caso, ele se defendeu nas redes sociais, afirmando que não tinha a intenção de tirar a vida de ninguém.  A Polícia Civil de São Paulo investiga esse e outros episódios envolvendo o influencer.

Schulz tem um perfil em rede social que segue o princípio do Redpill (pílula vermelha, na tradução do inglês), numa referência ao filme "Matrix", em que o personagem principal tomava a cápsula para tomar consciência de um mundo simulado à sua volta. Mas essa não é a única comunidade que ganha adeptos nas redes sociais e extrapola para o mundo real. Confira:

  1. Redpill

    Mulher submissa

    Propaga que os homens devem se aproveitar das mulheres e torná-las submissas para recuperar a virilidade perdida.

  2. Incel

    Celibatários

    Homens que se declaram "celibatários involuntários" e culpam as mulheres por não conseguirem ter relações sexuais, endossando violência contra qualquer grupo sexualmente ativo.

  3. MGTOW

    Mulher perigosa

    Sigla em inglês para 'man going their own way' (homens seguindo seu próprio caminho). Esse movimento acredita que a sociedade deve romper com as mulheres porque o feminismo as tornou perigosas.

Valeska Zanello observa que esses movimentos são reflexo da misoginia (aversão às mulheres), que, para ela, é o pilar da masculinidade hegemônica e se manifesta pelo menos de duas formas: direta, com discurso claramente recheado de ódio às mulheres, como em grupos neonazistas e também em movimentos como o do redpill; ou maquiada, como nos casos em que homens falam 'Eu amo uma mulher' no dia 8 de março, data dedicada a elas, porém com conotação sexual.

"A objetificação sexual aponta para uma misoginia em que reduz a outra — as mulheres principalmente, mas não apenas — em objeto, numa relação hierárquica de subjugação", reforça. 

Vice-presidente do Conselho Regional de Psicologia do Espírito Santo (CRP-ES), Marina Francisqueto Bernabé avalia que os homens direcionam afeto entre eles. "Quem eles estudam, leem, ouvem, valorizam? Com quem compartilham a ideia de uma sociedade melhor? Eles nutrem esse afeto entre eles e atacam as mulheres", pontua a psicóloga, acrescentando que o discurso de ódio está ligado ao poder, inclusive econômico, que os homens querem manter. "O ódio às mulheres é muito lucrativo", completa. 

O discurso, acrescenta Valeska Zanello, remonta a posicionamentos do século XVIII, quando, até mesmo intelectuais e filósofos  defendiam que as mulheres estivessem numa relação hierárquica inferior e não eram consideradas nem cidadãs. "Infelizmente, por mais que tenhamos avançado no campo democrático e hoje podemos votar, por exemplo, esses discursos persistem e são mais facilmente promulgados em função das redes sociais."

Taís Gasparian, advogada especialista em mídia, internet e imprensa e fundadora do Instituto Tornavoz, observa que o mundo deu uma guinada à direita, com posicionamentos mais conservadores, o que se reflete em comportamentos pontuais. "Nessa guinada, a misoginia, o machismo, o ataque às mulheres tem aumentado, não só no Brasil, mas em diversas partes do mundo. No país, esse movimento foi muito alavancado pela política do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL)", avalia. 

Crimes

A advogada frisa, no entanto, que a internet não é um local em que tudo é liberado, e aqueles que cometem crimes nas redes sociais podem ser alcançados pela lei. "Há uma diferença de um discurso que emite uma opinião ou debate um assunto para aquele que promove a perseguição a uma pessoa ou um grupo ou, ainda, uma agressão. O ataque, que pode produzir um dano real, é fator que facilita a classificação de um ilícito", opina Taís Gasparian. 

Embora haja outras condutas contra as mulheres já criminalizadas, a misoginia, especificamente, ainda não está tipificada como crime. Valeska Zanello defende avanço nessa área. 

"Por que é tão aceitável o discurso de ódio contra as mulheres? Por que é demandado sempre que as mulheres relevem? Inclusive, no nosso processo de socialização, afirmam 'isso é só uma brincadeira, é o jeito dele, é o tio do pavê'. Que impacto a 'aceitabilidade' da misoginia tem na saúde mental das mulheres? Importante pensar como discursos de ódio baseado na raça (racismo) e contra homossexuais (homofobia), pessoas trans (transfobia), já foram criminalizados. Por que não a misoginia, que afeta e tem como alvo 53% da população?", questiona. 

Para a professora da UnB, é fundamental tipificar, isto é, criar uma categoria e tornar o problema realmente visível. Ela acredita que a criminalização é uma resposta que deve ser dada à população de que esse discurso de ódio não é mais aceitável. A medida não apenas serviria para punir, mas também educar. 

Rose Marques, coordenadora de projetos do Instituto Maria da Penha — entidade que atua no enfrentamento à violência contra a mulher — também considera que a criminalização é um caminho que deve ser adotado com debates aprofundados sobre a aplicação de uma eventual nova legislação. Além disso, ela sustenta que é fundamental uma mudança social. 

"Precisamos, por exemplo, implementar o programa que a Lei Maria da Penha trouxe, principalmente no aspecto da prevenção. A gente nunca vai conseguir acabar com a violência se não houver um processo de transformação cultural. A criminalização é importante para mudar o patamar do problema — a violência doméstica sequer era um problema social antes de 2006, ano de publicação da legislação —, mas são necessárias políticas públicas de prevenção", analisa.

O discurso de ódio, constata Rose, aumenta a violência que impacta na vida — e na morte — de mulheres. "O que é preocupante é que, no fundo, a sociedade é tolerante a condutas violentas. Vemos casos de pessoas que, sabidamente, cometeram violência de gênero e que ganharam mais seguidores nas redes sociais", afirma a coordenadora do instituto, acrescentando a necessidade de iniciativas, entre outras áreas, na educação. 

Valeska Zanello desenvolveu com a professora Lígia Feitosa, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), um jogo para ser usado em escolas, com alunos a partir de 14 anos. A proposta é investir no letramento de gênero e combate ao sexismo. Trata-se do Baralho da Emancipação, dividido em quatro estruturas: meninas e mulheres, dispositivos amoroso e materno; masculinidades; raízes culturais do machismo; e violência contra as mulheres. 

"O baralho provoca o letramento de gênero, ajudando a visibilizar como situações do cotidiano escolar são permeadas pela misoginia e o quanto precisamos nomear e problematizar, desnaturalizar essa prática", conclui a professora. 

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