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Luciana é advogada, sócia fundadora do Abreu Júdice Advogados Associados, Mestre em Direito pela PUC/SP e Procuradora do Estado do Espírito Santo aposentada. Enzo é advogado do Abreu Júdice Advogados Associados e mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV/ES

Desmistificando a narrativa da "privatização das praias"

A PEC não elimina as regulamentações ambientais ou os direitos das comunidades tradicionais. Pelo contrário, busca conciliar interesses diversos, promovendo o desenvolvimento econômico sem comprometer a proteção ambiental

  • Luciana Marques de Abreu Júdice e Enzo Scaramussa Colombi Guidi Luciana é advogada, sócia fundadora do Abreu Júdice Advogados Associados, Mestre em Direito pela PUC/SP e Procuradora do Estado do Espírito Santo aposentada. Enzo é advogado do Abreu Júdice Advogados Associados e mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV/ES
Publicado em 12/06/2024 às 11h58

Recentemente, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 03/2022 do Senado assumiu as manchetes da mídia, o que tem gerado debates acalorados e controvérsias, muitas delas equivocadas, principalmente sob a denominação de "PEC da Privatização das Praias".

Porém, antes de assumirmos tais manchetes como verdade absoluta, uma análise cuidadosa dos pontos centrais da proposta revela que essa designação simplista não reflete adequadamente a complexidade e os benefícios que a medida pode trazer. É hora de desmistificar essa narrativa e considerar objetivamente o que está em jogo.

Os terrenos de marinha são bens públicos dominiais, ou seja, aqueles que não têm destinação pública definida e podem ser utilizados por terceiros, que não tem mais previsão no direito privado brasileiro e só permaneceu no direito público para resguardar uma fonte de arrecadação para a União.

Os particulares que estão na posse desses bens são obrigados a pagar ao governo federal anualmente taxa de ocupação ou foro, além de laudêmio quando de sua alienação. Já as praias são bens públicos de uso comum do povo destinados ao uso coletivo.

São considerados terrenos de marinha as faixas de 33 metros de largura da costa marítima, rios e lagos, contada a partir da Linha Preamar Médio de 1831, ou seja, a média das marés máximas dessa data. A maioria dessas áreas são densamente ocupadas e não raros são os endereços urbanos mais valorizados.

Bons exemplos são o bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e a Enseada do Suá em Vitória. Muitas são as discussões jurídicas travadas nos tribunais sobre o tema.

A PEC em questão busca regular a propriedade dos terrenos de marinha, que é um instituto jurídico tipicamente brasileiro, sem paralelo jurídico em outra nação ocidental democrática, e remonta à época do Império.

Os terrenos de marinha foram criados no Reinado de Dom João V em 1710 e sua primeira sistematização legislativa é de 1940, época em que Getúlio Vargas foi presidente e que a história o descreve como um governo autoritário.

A proposta, um novo marco regulatório para os terrenos de marinha, é antiga e bastante ansiada pelos proprietários de domínio útil e ocupantes desses imóveis. A atual PEC 03, de 2022, tem como origem a PEC 039, de 2011, proposta pelo deputado Arnaldo Jordy do PPS-PA, atual Cidadania, aprovada pelo Plenário da Câmara e encaminhada ao Senado, atualmente sob a relatoria do senador Flávio Bolsonaro.

Portanto, contrariando interpretações apressadas, a proposta não visa privatizar as praias em si, mas sim definir uma norma jurídica clara e contemporânea para regulamentar os terrenos de marinha.

Um dos pontos mais importantes da PEC é que ela busca garantir o acesso da população às praias, mantendo essas áreas sob domínio público. Isso significa que, independentemente de quem seja o proprietário dos terrenos de marinha, a faixa de areia e o mar continuarão acessíveis ao público, protegendo um dos principais patrimônios naturais e culturais do país.

Além disso, a proposta é de regular a transferência de propriedade para os ocupantes dessas áreas, muitos dos quais têm construído suas vidas e comunidades ao longo das gerações. Isso não apenas reconhece os direitos dessas pessoas, mas também promove a segurança jurídica e a estabilidade para essas comunidades.

Outro aspecto importante é a possibilidade de transferência de áreas para os estados e municípios, o que pode abrir caminho para uma gestão mais eficiente e adaptada às necessidades locais. Isso pode incluir investimentos em infraestrutura, preservação ambiental e desenvolvimento sustentável das regiões costeiras.

A PEC não elimina as regulamentações ambientais ou os direitos das comunidades tradicionais. Pelo contrário, busca conciliar interesses diversos, promovendo o desenvolvimento econômico sem comprometer a proteção ambiental e os direitos das populações locais. Até porque, caso sejam construídos empreendimentos ao longo da faixa, estes obrigatoriamente deverão ver aprovados a devida licença ambiental com os órgãos responsáveis.

Vista aérea de Vitória
Curva da Jurema. Crédito: Divulgação

As críticas sobre o projeto deveriam envolver questões mais pertinentes, como a discussão acerca do prazo para transferência aos particulares que, segundo o art. 3º da referida proposta, seria de dois anos, e poderia acarretar enxurradas de ações na justiça discutindo os valores a serem pagos pelos particulares a título de foro ou taxa de ocupação.

Assim, a bem da verdade, a pretexto de “resguardar o patrimônio público e ambiental” a União pretende manter controle e (mais) uma fonte de arrecadação recorrente e expressiva, devido à grande expansão urbana. Há ainda um forte incentivo social na proposta, já que a União transferirá os terrenos de marinha gratuitamente para as áreas ocupadas por habitações de interesse social, enquanto nas demais se dará de forma onerosa.

Ao analisar a PEC da Propriedade dos Terrenos de Marinha de forma mais aprofundada, torna-se claro que rotulá-la como "Privatização das Praias" é uma simplificação injusta e enganosa. Até porque a alteração sequer recai sobre o art. 20, IV da Constituição Federal, o responsável por caracterizar as praias marítimas como bens da União. O que se tem é uma rotulação que não corresponde à verdade, dita “fake news” que desinforma a população, a pretexto de manter arrecadação federal.

Ao contrário, a proposta visa trazer clareza e segurança jurídica para uma questão complexa, ao mesmo tempo em que protege o acesso público às praias e reconhece os direitos das comunidades locais. É hora de deixar de lado os rótulos sensacionalistas e considerar os méritos reais dessa importante medida legislativa.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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