Sabe-se, sem sombra de dúvidas, quão nociva pode ser a compulsão em apostas das mais variadas espécies, razão pela qual a OMS, desde 2018, classifica o vício em jogos de azar como uma enfermidade. As bets têm se tornado responsáveis, em inúmeros casos, pela destruição de patrimônio, vidas e famílias.
A decisão pela ilegalidade ou permissão de acesso a tal mercado de apostas, então, cabe ao Estado, por meio do devido processo legislativo, respeitando-se a soberania da democracia representativa que – ao menos em tese – sintetiza a vontade popular.
Dessa forma, a discussão aqui proposta não gira em torno da proibição ou legalização das bets, mas busca trazer outro ponto de vista que passou a ter grande relação com o tema recentemente.
Isso porque, nos últimos anos – e sobretudo nas últimas semanas –, observa-se um fenômeno crescente no cenário jurídico brasileiro: a hiperexposição da Justiça Criminal, a qual encontra uma de suas mais evidentes manifestações nas prisões de figuras públicas que, por óbvio, adquirem grande repercussão midiática.
Esse processo, marcado pela exposição ostensiva e reiterada de investigações e procedimentos criminais, transforma o sistema judicial em um espetáculo para o consumo e deleite da população.
Nesse sentido, a recente prisão de personalidades conhecidas – entre elas a influencer e advogada Deolane Bezerra, na investigação das bets –, em muitos casos até mesmo sem embasamento suficiente para tanto, coloca em questão os princípios fundamentais do devido processo legal e da presunção de inocência, elementos cruciais para a subsistência de um Estado Democrático de Direito.
Para analisar tal fenômeno, é necessária a compreensão de que essa transformação da Justiça Criminal em uma vitrine não se restringe apenas aos acusados, mas envolve, do mesmo modo, a possibilidade de promoção da imagem de determinadas figuras diretamente ligadas ao processo, como juízes, promotores e delegados.
Assim, em vez de um ambiente exclusivamente técnico e sigiloso, a publicidade quase que intrínseca aos casos de grande repercussão, especialmente os que envolvem figuras públicas, pode se tornar uma ferramenta de projeção para aqueles que conduzem as investigações ou os julgamentos e enxergam, em tal ocasião, a possibilidade de “fazer seu nome”.
Juízes e outros operadores do Direito, visualizando-se no centro de processos de alta visibilidade, em muitas oportunidades acabam recebendo um protagonismo desproporcional e exacerbado, o qual é capaz de acarretar um desejo adicional (ainda que inconsciente) de “mostrar serviço” para que seja recebido algum tipo de reconhecimento, seja em termos de reputação, seja em termos de influência profissional ou até política, haja vista a quantidade de vereadores, deputados e prefeitos oriundos das forças de segurança pública.
A visibilidade das decisões, portanto, ao serem amplamente divulgadas pela mídia e replicadas nas redes sociais, pode criar um ambiente em que os ideais de imparcialidade e neutralidade são colocados em xeque.
Afinal, a constante exposição de suas ações e decisões tende a atrair atenções que extrapolam o campo jurídico, abrindo espaço para especulações sobre motivações políticas ou pessoais, ainda que, frise-se, essas atuações não sejam intencionais ou detenham tal finalidade.
Exemplos do fenômeno em questão não faltam no cotidiano brasileiro, sendo o mais recente deles a decisão que decretou a prisão do cantor e compositor Nivaldo Batista Lima – conhecido publicamente como ‘Gusttavo Lima’.
A mencionada decisão foi tão desprovida de fundamentos que, em menos de vinte e quatro horas de sua publicação, foi derrubada pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco, por meio da concessão de uma ordem de habeas corpus que revogou a prisão do artista.
Nesse caso, entre outros argumentos, a autoridade que decretou a prisão buscou embasá-la com as seguintes afirmativas:
“Para ser magistrado e zelar pela justiça, defendendo o Estado e suas instituições, é imprescindível agir com coragem e firmeza, cabe ao Poder Judiciário a coragem de enfrentar interesses obscuros e agir em prol do bem comum, sempre com integridade e determinação. [...] A prisão não pode ser vista apenas como uma medida punitiva, mas como um mecanismo de proteção da sociedade e um meio de garantir que a Justiça prevaleça. Somente assim será possível evitar que a impunidade se perpetue e que os direitos dos cidadãos sejam efetivamente defendidos.”
Nota-se, dessa forma, a visão romântica e de protagonista por meio da qual é decretada a prisão do cantor e são mantidas as demais até então decretadas (acerca das quais o próprio Ministério Público já havia opinado pela necessidade de substituição por medidas menos gravosas).
Os trechos e a própria íntegra da decisão, assim, revelam uma ilustração do que fora até aqui exposto: a hiperexposição do caso e de seus atores (nesta situação, sobretudo da figura do juiz) torna o ato de julgar – ou investigar, no caso em questão – em uma espécie de vitrine, na qual decisões judiciais, ao invés de serem tomadas exclusivamente com base em critérios jurídicos, soam influenciadas pela expectativa do quão propagadas e bem recebidas serão pelo público, o que acaba por gerar dois grandes problemas: a ausência de fundamentação mínima para a decretação da prisão e o desrespeito à presunção de inocência.
A espetacularização da Justiça Criminal, portanto, tem consequências graves, não apenas para os acusados, mas igualmente para o próprio Judiciário. Em primeiro lugar, ela compromete sua credibilidade, ao suscitar a discussão ou até mesmo criar a impressão de que suas decisões não são tomadas com base em fundamentos jurídicos sólidos, mas sim em interesses midiáticos. Essa percepção mina a confiança da população na imparcialidade da justiça, que passa a ser vista como seletiva e parcial.
Além disso, a hiperexposição contribui para o enfraquecimento das garantias processuais, uma vez que a atuação midiática muitas vezes se sobrepõe ao respeito pelos direitos fundamentais dos acusados. Em um Estado Democrático de Direito, a investigação e o processo penal deveriam ser conduzidos com sobriedade e com base em provas, não como uma espécie de ‘trampolim’ para a projeção dos que neles atuam.
Com base no exposto, a espetacularização da justiça criminal, exemplificada pela prisão de figuras públicas sem fundamentação idônea, em última instância, representa um retrocesso no respeito aos direitos e garantias fundamentais que deveriam nortear o processo penal brasileiro. Cria-se a cultura do encarceramento e a falsa ideia de que a prisão é a melhor solução para todo tipo de problema criminal. E quanto maior a repercussão, maior a necessidade de prisão, como suposta resposta para a sociedade.
É necessário que o Poder Judiciário, o quanto antes, busque frear a atuação das autoridades públicas que sacrificam sua imparcialidade em virtude da repercussão de seus casos e que as decisões judiciais, sobretudo aquelas que envolvem a privação da liberdade, sejam tomadas única e exclusivamente com base em critérios técnicos e jurídicos, não sob pressão ou influência midiática.
Caso não se opere tal correção de rota, chegaremos a um momento em que uma decisão será considerada como juridicamente adequada ou inadequada não de acordo com a fundamentação nela dispensada, mas conforme o número de “cliques” ou “likes”. Em cada juiz ou promotor, um influencer? O que pode ser mais perigoso para o Direito, a Justiça e a liberdade?
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.