O ano era 2010, e a sociedade brasileira parecia ter chegado ao seu limite de tolerância, diante de séculos de desmandos e de corrupção que reinavam na cena política cotidiana do país. Com mais de 1 milhão e seiscentas mil assinaturas colhidas, por todo o território nacional e mais de um ano de trabalho, nascia a Lei da “Ficha Limpa”, como um grito de “basta!” preso na garganta por tanto tempo.
Idealizada pelo então juiz Marlon Reis e com o apoio original da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) e de outras inúmeras instituições da sociedade civil organizada que aderiram à causa, a campanha liderada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) foi vitoriosa, resultando na aprovação dessa importante norma, como a segunda lei de iniciativa popular mais votada na história do Brasil (Lei Complementar nº 135/2010).
Passou-se, portanto, a se impedir que candidatos condenados por órgãos colegiados disputassem cargos políticos pelo prazo de 8 anos. De lá até hoje, milhares e milhares de políticos tiveram suas pretensões eleitorais freadas por este dispositivo, oriundo da vontade popular. Só nestas últimas eleições, foram mais de 2.500 candidatos “barrados no baile”.
Porém, quem sempre defendeu a criação e a manutenção da Lei da Ficha Limpa nunca teve vida fácil. Por motivos óbvios, enquanto o povo aplaudia a sua aplicação, seus detratores naturais, inconformados com aquilo que lhes foi imposto “goela abaixo”, tentavam, a todo custo, anular seus efeitos.
Tecnicamente, todavia, não haveria motivos para estes ataques. Uma norma bem fundamentada, com previsões tanto de direito material, quanto de direito processual eleitoral e que estabelece regras claras de inelegibilidade. Amplamente testada pelo Judiciário, chancelada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e mais do que justificada, considerando-se a quantidade de recursos “protelatórios” que sempre impediam que os feitos chegassem ao segundo grau de jurisdição. Sem ela, políticos condenados por peculato e outros tipos mais graves não só eram eleitos, como também conseguiam terminar seus mandatos, impunemente.
Recentemente, ações isoladas contra a lei parecem ter aberto espaço para movimentos institucionais, aparentemente mais complexos e planejados, e que vieram por reforçar o coro daqueles que querem derreter esta conquista da democracia brasileira.
Primeiro, no final de 2020, veio o entendimento monocrático do ministro Nunes Marques, do STF que, provocado pelo Partido Democrático Brasileiro (PDT), modifica trecho relevante da Lei da Ficha Limpa, flexibilizando o período de inelegibilidade.
E, segundo, e mais recentemente, temos em tramitação, em caráter de urgência e sem a devida discussão com a sociedade, o Projeto de Emenda Constitucional nº 3/2021, a PEC da Imunidade Parlamentar que, além de reduzir as chances de prisão de parlamentares, mais uma vez, atinge e anula os efeitos da observância da “Ficha Limpa” como condição “sine qua non” para a representação popular.
É chegada a hora de resgatarmos aquele sentimento que motivou o povo brasileiro, há pouco mais de 10 anos, a criar este mecanismo que simboliza o rompimento da letargia cívica que nos impedia de exigir um de nossos mais básicos direitos: o de votar em quem não deve à Justiça!
O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) não descansará, juntamente com as entidades que o compõem, na vigilância e mobilização necessárias neste momento crítico de ameaça ao pilar do Princípio da Moralidade, do qual definitivamente não podemos abrir mão.
A escolha é simples. Ou lutamos por não aceitarmos nada menos do que já conquistamos, ou vamos permitir este tapa na testa do cidadão que o jogará de volta à década de 1990, levando o Brasil eleitoral a funcionar no modo “tudo como dantes, no reino de Abrantes”.
Os autores são advogados e diretores do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE)
*Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta
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