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É mestre em Direito (FDV); doutor em Direito (Universidad de Salamanca); promotor de Justiça Titular junto ao Tribunal do Júri de Vitória

Plano Pena Justa: a equivocada percepção de quem é vítima e de quem é criminoso

Um país tomado pela criminalidade em massa, pela insegurança pública e pela violência desenfreada precisa dar respostas satisfatórias e coerentes à população. E essas respostas deveriam estar focadas em fortalecimento de punições justas e não em redução de penas

  • Rodrigo Monteiro É mestre em Direito (FDV); doutor em Direito (Universidad de Salamanca); promotor de Justiça Titular junto ao Tribunal do Júri de Vitória
Publicado em 19/02/2025 às 16h31

Em 12 de fevereiro último, o governo federal, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), lançou o Plano Nacional para Enfrentamento do Estado de Coisas Inconstitucional nas Prisões Brasileiras, popularmente chamado de programa “Pena Justa”.

Por ocasião do lançamento do programa, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, afirmou que “a cultura punitivista ainda está profundamente enraizada na sociedade brasileira e são necessárias medidas firmes e eficazes para transformar essa realidade. "Esta que estamos colocando em prática hoje é uma dessas medidas".

A iniciativa prevê 51 ações e 306 metas até 2027 para combater a superlotação, melhorar a infraestrutura, fortalecer a reintegração social e assegurar a continuidade das mudanças no sistema prisional.

Acredito que o programa fora pensado a partir de uma perspectiva positiva, porém, infelizmente, como toda política pública vinculada à execução penal, insiste em afirmar que o criminoso é “vítima da sociedade” e impõe à “cultura do encarceramento” uma equivocada responsabilidade sobre a violência dentro e fora dos presídios.

De início, convém anotar que o plano laborou em equívoco ao afirmar que a população carcerária brasileira é de 851.493 detentos. Esse dado não é totalmente verídico, eis que desse número, aproximadamente, 220.000 pessoas (1/4 do montante) cumprem pena em prisão domiciliar.

Outra informação importante: na maioria dos estados brasileiros não existe o regime semiaberto, de modo que os presos progridem diretamente do regime fechado para o regime aberto ou, como preferem alguns especialistas, para o “semiaberto harmonizado”, onde não há obrigação de permanecer na prisão, mediante o uso de tornozeleira eletrônica.

Umas das medidas propostas é a ampliação à remição de pena pelo trabalho e pelo estudo, de modo a conceder tal benefício mesmo a quem não trabalhar ou estudar, desde que não exista oferta do benefício no respectivo presídio. Igualmente polêmica é a medida que propõe remição de pena em razão de realização de trabalho doméstico.

Outra sugestão do plano é o “fortalecimento da cultura de respeito aos precedentes dos Tribunais Superiores”, algo que é de difícil compreensão, eis que nem mesmo os Tribunais Superiores seguem os precedentes do Tribunais Superiores, fazendo com que a jurisprudência penal seja dotada de uma instabilidade sem tamanho.

Superlotação em presídios
Superlotação em presídios. Crédito: Fábio Vicentini/Arquivo A GAZETA

O plano apresenta uma espécie de inversão de prioridades, ao passo que busca impor cotas de contratações por empresas que prestam serviços públicos para egressos do sistema prisional, deixando de lado o grave problema do desemprego que assola considerável parte da população brasileira.

Nas 448 páginas que formam o plano “pena justa”, o problema do racismo é mencionado em 97 oportunidades. O plano estabelece como marco inicial “o reconhecimento do racismo como fator determinante para a existência do Estado de Coisas Inconstitucional nas prisões brasileiras”. Esse termo se popularizou por ocasião do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que reconheceu uma espécie de violação massiva dos direitos fundamentais dos presos no país.

É importante salientar algo que deixou de ser trazido no plano, não sei se por desconhecimento ou por conveniência: estudos apontam que 70% da população carcerária é preta ou parda e, com exceção do tráfico de drogas, os crimes que mais levam à prisão são o roubo e o homicídio.

Mesmo não tendo acesso às estatísticas precisas, podemos afirmar que a imensa maioria das vítimas desses crimes cometidos mediante violência ou grave ameaça é igualmente composta por pessoas pretas, pardas e pobres. Em suma: a população carcerária é composta, em sua maioria, por pretos e pardos que vitimaram pessoas pretas e pardas.

Mais uma vez, a vítima deixa de ser o foco do problema, e o Estado opta em empenhar energia em quem é a causa do problema. A vítima, sempre esquecida, foi novamente escanteada, devendo aceitar seu papel secundário de mero “meio de prova”.

Lindo seria o dia em que o governo federal e o Conselho Nacional de Justiça lançassem, com pompas e fogos de artifício, o “Plano Nacional para o enfrentamento ao Estado de coisas amorais na segurança pública brasileira”.

Basta abrir os portais de notícias para confirmar que a (in)segurança pública no Brasil é o maior problema a ser enfrentado. Estamos à beira do abismo e as medidas adotadas pelo Estado insistem em nos levar para frente.

Nossa população está acuada. Todos os dias inocentes perdem a vida a troco de nada. Um telefone celular passou a valer mais do que uma vida!

A punição justa deveria servir como desestímulo à prática de novos crimes, entretanto, a incerteza quanto à resposta estatal eficiente se converte em verdadeiro incentivo à criminalidade. O que possui caráter de dissuasão não é a quantidade da pena a ser aplicada, mas sim a certeza da pena a ser aplicada.

Atualmente, a cultura do “vai dar nada não”, alimentada pelo sentimento de clara impunidade, impulsiona a prática de novos crimes.

Pesquisas conceituadas apontam que menos de 10% dos crimes violentos são objeto de investigação e se tornam processos judiciais. Isso significa que 90% dos crimes não recebem a atenção do Estado. Nessa perspectiva, é uma incoerência falar em “encarceramento em massa”.

O que vivenciamos em nosso país é uma verdadeira criminalidade em massa, provocada por vários fatores, entre os quais destaco de extrema relevância a nítida sensação de impunidade percebida por quem pensa em cometer o crime.

Resta claro, pois, que o crime não é causado por “ausência de oportunidades” ou por “exclusão social”, mas sim é o resultado de uma escolha racional. Pensar de forma diferente significa conferir uma inequívoca ofensa aos milhares de brasileiros pobres que optam (LIVRE ARBÍTRIO) por uma vida digna.

Pobreza não é sinônimo de crime! Exclusão social não é sinônimo de crime! Se assim o fosse, pessoas “bem-nascidas” jamais cometeriam delitos.

O crime, conforme anotado na excelente pesquisa do prof. Pery Shikida (Aspectos da economia do crime em unidades prisionais da região metropolitana de São Paulo: elementos teóricos e evidências) “é motivado pela ideia de ganho fácil e pela tríade cobiça/ambição/ganância”. Segundo referido estudo, “o rendimento que o crime proporcionava é cerca de 12,9 vezes mais do que a renda do trabalho legal”.

A pesquisa detalha que “o comportamento criminoso de natureza econômica não é visto como uma ação impulsiva, emocional ou antissocial, mas como uma escolha racional; o ato de cometer crimes é uma escolha tomada de forma racional, considerando a percepção dos ganhos e custos decorrentes dessa atividade”.

O equívoco persiste em mais uma vez enxergar o preso como vítima de um sistema opressor.

É óbvio que nenhum ser humano racional deveria defender a ideia de que preso merece ser tratado como bicho, receber tratamento degradante ou ser objeto de tortura. Aqueles que pregam essas ideias nem sequer merecem receber credibilidade.

É dever do Estado conferir dignidade ao preso e tratá-lo de forma respeitosa. O que devemos questionar é a forma com que o Estado insiste em enxergar a pessoa que cometeu crime, percebendo-a como uma verdadeira vítima, deixando de lado a preocupação com as verdadeiras vítimas.

E isso fica nítido em várias passagens do Plano Pena Justa, merecendo destaque o seguinte trecho: “é possível citar a situação do impacto financeiro de uma pessoa presa para família e pessoas próximas. Se essa pessoa contribui regularmente para o orçamento doméstico, quando é detida, além de não mais ajudar a pagar as contas da família, passa a representar um ônus devido ao custeio da assistência jurídica, despesas com visitas e provimentos necessários para a vida na prisão”.

Se para a família de quem está preso o impacto financeiro é negativo, vamos imaginar para a família de quem foi assassinado por causa de um telefone celular? A diferença básica é que o preso escolheu cometer o crime, ao passo que a vítima não escolheu ser assassinada!

Jamais podemos esquecer que o preso foi o autor de um crime (em regra, um crime cometido com violência ou grave ameaça, pois são esses os delitos que levam à prisão). Diversamente do que se espera, o plano enxerga o preso como uma vítima e, solenemente, ignora as vítimas de quem, racionalmente, escolheu delinquir.

Penitenciária é o local adequado ao cumprimento da “penitência”. A pena tem uma função fundamental na prevenção de novos crimes. É descabido pensar em “penitências” degradantes, cabendo ao Estado promover as medidas para que a execução penal transcorra de forma justa, porém, jamais permissiva.

Um país tomado pela criminalidade em massa, pela insegurança pública e pela violência desenfreada precisa dar respostas satisfatórias e coerentes à população. E essas respostas deveriam estar focadas em fortalecimento de punições justas e não em redução de penas.

Um sistema prisional superlotado é sintoma de uma sociedade que sofre com a violência.

Para que o período de execução penal cumpra sua função básica de prevenção a novos delitos, cabe ao Estado adotar duas premissas básicas: respeitar todos os direitos da pessoa presa e fazer com que autores de crimes graves sejam mantidos presos, na forma da lei, durante o cumprimento de sua pena.

Jamais devemos confundir dois conceitos que não se misturam: criminoso é criminoso e vítima é vitima!

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