Em valor total inferior a 22 reais, o extravio de uma garrafa de refrigerante, dois pacotes de macarrão instantâneo e um refresco em pó foi o suficiente para configurar um furto cometido em um supermercado no último dia 29 de setembro. O caso repercutiu nacionalmente e o "flagrante" foi confessado aos policiais: "Roubei porque sentia fome", teria dito a mulher, também mãe de quatros filhos. Na abordagem houve fuga e perseguição por viatura, resultando em queda, ferida na testa e uma estadia de duas semanas no Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha, na Grande São Paulo.
Ainda que figure absurdo exemplo de desproporção entre pena e delito, o caso relatado tem sido comum no sistema judiciário brasileiro. Em março deste ano, outra mulher foi flagrada saindo de um mercado em Minas Gerais com produtos que não foram pagos, dois pedaços de picanha e uma lâmina de barbear. A acusada foi levada à delegacia e logo presa, o que fez com que suas filhas permanecessem em casa sem notícias e com fome por duas semanas, conforme o relato da avó.
O cenário com que estamos lidando nos faz supor que tais furtos serão cada vez menos raros. Nos últimos anos, a escalada de preços de alimentos e o aumento de desempregados traz à tona uma questão sensível e urgente às nossas autoridades: o julgamento de furtos famélicos, ou seja, a produção de sentenças a roubos que se justificam por "estados de necessidade" (avaliados quanto às condições da pessoa acusada) e que se respaldam pelo "princípio de insignificância". Frente a uma crise social e econômica sem precedentes, é correto e justo seguirmos vigiando, prendendo e julgando atos de pessoas que buscam a sobrevivência de si e de seus dependentes?
Ainda que desde 2004 o Supremo Tribunal Federal oriente ao princípio da insignificância, a falta de caráter normativo a tal prescrição tem resultado em poucos efeitos práticos. Nos casos mencionados, foi apenas por meio de decisões de juízes de cortes superiores que essas mães com fome lograram absolvição e soltura. Desse modo, a lógica punitivista tem dado tom à forma com que delegados, promotores e juízes de tribunais estaduais conduzem tais casos e seus agentes, neste caso a maioria mulheres quase pretas de tão pobres, na poesia triste e atual de Caetano Veloso.
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